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Pele Velha │ Giselle Fiorini Bohn

Por Bruno de Andrade

Eu nunca fui boa com a palavra falada. Nunca fui articulada; sempre demoro demais pra escolher as palavras, e quando finalmente o faço, escolho errado. Na verdade, é meu pensamento que não é organizado; sua verbalização somente torna essa desorganização visível a todos. Sempre invejei aqueles que quando expõem uma ideia ou um argumento conseguem soar tão claros e lógicos. Nunca fui assim. Os pensamentos perambulam pela minha mente como números desconexos, sem que os consiga decifrar. Se só consigo solucionar uma conta matemática, por mais simples que seja, escrevendo tudo num pedaço de papel, também só consigo pensar sistematicamente escrevendo. As letras, as palavras, as frases, os parágrafos, as vírgulas, os pontos e vírgulas – meus favoritos –, as reticências, os pontos finais: tudo precisa estar alocado em uma certa ordem, com uma certa beleza, ou os conceitos que carregam permanecerão sempre estranhos, e não apenas aos outros, mas, mais importante, a mim. 

Essas são as palavras que abrem a novela Pele Velha, estreia na ficção da escritora paulistana Giselle Fiorini Bohn, e é curioso notar como elas sintetizam os principais elementos que irão acompanhar o leitor nas páginas seguintes: a sinceridade desconcertante e a incapacidade comunicativa de suas personagens, o fluxo de consciência algo caótico em que a autora nos mergulha e, sobretudo, o esmero com a colocação das palavras e os sinais de pontuação, mesmo nos longos trechos em que não há nenhum — é na manipulação do ritmo que reside a principal virtude da prosa de Giselle.

Marcas na pele

Pele velha parte de uma premissa algo batida, ainda que muito mais recorrente entre pais e filhos do que entre mães e filhas, o que por si só já lhe emprestaria algum sabor de novidade: a da herança inesperada — aqui, uma caixa repleta de escritos acumulados pela mãe durante anos — que revela segredos de um familiar misterioso. Porém, não tarda para que o enredo se afaste do lugar-comum, a começar pelo fato de que a herança chega às mãos da filha com a mãe ainda viva, mesmo que em estado terminal, e essa não pareça muito disposta a dar maiores explicações; aliás, não parece nem mesmo se importar tanto assim com o conteúdo da caixa, gerando enorme irritação por parte da filha, que não se furta a queixar-se furiosamente sobre sua sorte.

 

É nesse jogo de indiferença e irritação que o enredo, narrado em primeira pessoa pela filha, começa a ganhar contornos muito próprios. Giselle não maquia suas personagens; ao contrário, expõe suas falhas de maneira crua, visceral. É difícil gostar delas, principalmente da narradora com seu mau humor quase onipresente. Mas é ainda mais difícil condená-las, já que são justamente seus defeitos que as tornam tão próximas, e talvez por isso ainda mais incômodas, do leitor. Exasperar-se ao notar as horas perdidas com futilidades nas redes sociais, calar-se numa discussão, mesmo julgando ter a razão ao seu lado, ao notar a força do oponente, aceitar um trabalho indesejado para evitar constrangimento, negligenciar pessoas queridas, perceber-se arrogante, egoísta ou mesmo mesquinho: todos já passamos, em maior ou menor grau, por experiências semelhantes. Ao apontar as imperfeições nas peles de suas protagonistas, a autora nos convida a olhar no espelho e refletirmos sobre nossas próprias marcas e cicatrizes.

Fluxo de consciência ritmada

Pode-se dizer que a narrativa de Pele Velha é propositalmente irregular. Giselle empresta, com notável habilidade, duas vozes bastante distintas às protagonistas. A mãe, em suas cartas, poemas e relatos, traz lirismo e suavidade ao texto, mesmo quando narra sentimentos dos mais dolorosos — a passagem em que ela percebe a barreira que sempre irá separá-la da filha é particularmente bonita e absolutamente devastadora. Cada novo texto puxado da caixa oferece uma experiência íntima, delicada, para ser degustada com calma. E é curioso observar o contraste dessa poesia com a apatia que a personagem demonstra quando precisa engajar em alguma conversa.

Já a filha se expressa de maneira coloquial, ligeira, sem economizar no cinismo e nos palavrões, chegando a travar diálogos recheados de ofensas e perguntas retóricas consigo mesma. É possível que o leitor se aborreça com esses momentos e anseie por um novo encontro com os escritos da mãe. Mas é um risco calculado pela autora, que dosa as contrapartes narrativas de forma que o leitor jamais se sinta em terreno seguro, previsível. E essa gangorra se mantém até as últimas linhas da história.

Mais do que por reviravoltas do enredo, porém, essa dinâmica de tensionar e distensionar o texto funciona tão bem graças ao impressionante domínio que Giselle demonstra ao manipular o ritmo de sua escrita. A velocidade da leitura não é influenciada apenas pela linguagem de suas protagonistas, mas pelas escolhas de palavras, pelas construções frasais e, em especial, pela pontuação. Há um esmero na colocação de cada ponto, vírgula ou reticência. A cadência nas falas ou pensamentos dos personagens revelam tanto sobre eles quanto seus conteúdos. Durante algumas explosões da filha, a autora abre mão de qualquer pontuação, deixando fluir a descarga emocional da personagem, e ainda assim o texto se mantém limpo, compreensível. É essa condução firme que mantém coesas as diferentes narrativas de Pele Velha.

Um tratado sobre a incomunicabilidade

Pele Velha vai muito além de uma história sobre uma possível reconciliação entre mãe e filha. Fracasso conjugal, abandono, relações familiares, inadequação social, medo, culpa, solidão; são vários os temas que orbitam as protagonistas e os demais personagens ao seu redor. Há, contudo, uma questão que ressoa sob a superfície de todas as relações construídas no livro: a incapacidade de comunicação. De namoros a entrevistas de emprego, há sempre algo fora de lugar nos diálogos, nas relações de poder, nas demonstrações de afeto, nas tentativas de aproximação ou afastamento. E fica a impressão de que todos os problemas seriam solucionados se as pessoas conseguissem dialogar. Mas a sensação durante a leitura não é de exasperação pela incompetência dos personagens, e sim de resignação pelo entendimento de que os motivos que os impossibilitam de se comunicarem são não apenas perfeitamente plausíveis, mas até que bastante razoáveis. Num livro que trata de cartas, chega a ser de uma cruel ironia.

Sob a pele

A escrita de Giselle é intensa e ela parece demandar do público a mesma intensidade durante a leitura, seja pelos muitos momentos de tensão emocional, seja pelos trechos sem pontuação, seja pela ânsia de ler o próximo texto da caixa misteriosa e tentar decifrar que enigma une essas duas mulheres tão distintas em suas formas de se expressar e de encarar a vida, mas tão próximas em seus medos e paixões. É um livro para se ler sem respirar. E depois reler para buscar as nuances. Para incomodar debaixo da pele.

 

Não há aqui um final apoteótico. Pele Velha não é história de redenção ou castigo, porque não é disso que suas personagens precisam. Talvez elas só precisem daquilo que lhes foi negado durante toda a vida: compreensão.

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