Ela se chama Rodolfo │ Julia Dantas
Por Bruno de Andrade
Era uma vez
Era uma vez um homem.
É com essa frase típica dos contos de fadas que Julia Dantas abre seu novo romance, Ela se chama Rodolfo (DBA editora), e com ela anuncia que estamos diante de uma espécie de fábula contemporânea.
Murilo, o homem em questão, começa sua jornada falhando na aparentemente simplória tarefa de abrir a porta do apartamento que acabara de alugar em improváveis e suspeitas condições. Após concluir que caíra numa óbvia arapuca e cogitar fazer moradia ali mesmo no corredor do prédio, decide por uma última tentativa, dessa vez girando a chave com delicadeza. Então, como se estivesse seguindo uma daquelas regras que desfazem encantamentos, a porta se abre. Dentro do imóvel, Murilo encontra o item mágico que o levará a se aventurar pelas ruas de Porto Alegre: Rodolfo, uma minúscula tartaruga, cuja única habilidade especial é a infindável disposição em se locomover para frente, em linha reta, ignorando os obstáculos e abismos que ameaçam sua vagarosa marcha.
E assim começa a epopeia de um homem tentando se livrar de uma tartaruga.
Entre o estranho e o maravilhoso
Tzvetan Todorov, filósofo e linguista búlgaro, definiu que o fantástico na literatura acontece na zona cinzenta da dúvida entre o estranho, quando os insólitos acontecimentos de uma narrativa ganham uma explicação dentro das regras do nosso mundo; e o maravilhoso, quando a história abraça o sobrenatural. Sob essa perspectiva, podemos dizer que Ela se chama Rodolfo é literatura fantástica.
Ou quase.
Ao brincar com as regras dos contos de fadas e uma estrutura típica das “histórias de estrada”, como aqueles road movies que nos acostumamos a ver nas telas do cinema, onde os personagens saem zanzando por aí e encontrando figuras pitorescas, Dantas joga o leitor num terreno inseguro. Ainda que estejamos numa Porto Alegre palpável, repleta dos problemas característicos de uma grande metrópole, e não haja nada de sobrenatural no enredo, são tantos os eventos inusitados e tão pitorescos são seus protagonistas, que é inevitável a sensação de que algo está fora de esquadro.
Ela se chama Rodolfo é um livro difícil de definir. É um livro estranho. E isso é maravilhoso.
Bibbidi-Bobbidi-Boo
Quem melhor encarna essa estranheza é Francesca, a misteriosa dona do apartamento, com quem Murilo começa a se corresponder por e-mail. Francesca tem sempre um causo para contar, como uma espécie de Sherazade — referência que, em dado ponto, é explicitada, roubando um pouco de sua força —, e um amigo que ela garante que receberá Rodolfo. Com sua linguagem poética e seus conselhos em forma de parábolas, Francesca faz as vezes de fada-madrinha, guiando Murilo em seu percurso.
Também é por causa de Francesca que Camilo, um colombiano à procura de um rumo na vida, invade — de forma pra lá de literal — a vida de Murilo, e acaba se tornando seu fiel escudeiro. Lídia, irmã do protagonista, completa a trupe que busca um lar para Rodolfo. A cada incursão frustrada, já que a tartaruga não para de ser rejeitada, os vínculos entre os personagens se fortalecem, e a mágica de Francesca vai ganhando forma.
Um vai e vem sem volta
Como já demonstrara em Ruina y leveza (Não Editora) Dantas gosta de colocar seus personagens em movimento, e aqui os ares de road story ganham contornos ainda mais claros, embora de uma maneira inusitada: os personagens visitam diversos recantos de Porto Alegre, mas sempre voltam para o bagunçado apartamento de Francesca, único local onde Rodolfo interrompe sua linear caminhada.
O enredo, porém, segue lógica oposta; assim com a tartaruga, os personagens precisam seguir em frente. E é aí que Dantas faz sua aposta mais arriscada. O Murilo que luta para abrir a porta do apartamento pela primeira vez é um homem afundado na mágoa de um relacionamento que não deu certo, conformado com um emprego abaixo de sua qualificação acadêmica e arredio a quase qualquer contato social. Estes dramas, que a princípio norteiam a narrativa, vão se diluindo e dando espaço a novos eixos temáticos à medida que os personagens vão abandonando suas próprias carapaças: Francesca se revela, Lídia se liberta, Murilo amadurece, Camilo se expõe. Por baixo de toda a estranheza, Ela se chama Rodolfo, como uma boa fábula, é uma história de amizade e transformação.
Menos para Rodolfo. Este continua andando pra frente.
E eles foram…
Um bom conto de fadas precisa terminar com um “felizes para sempre”. E, ao seu modo, Dantas não se furta a oferecer um. Não com casamentos ou tesouros, mas com o entendimento de que a história de Murilo trata de uma jornada de amadurecimento. E ele o encontra através da aceitação: de sua própria condição, dos mistérios jamais respondidos, das pessoas que nos deixam, das portas que se abrem, do caminhar da própria vida.
Talvez a chave para entender este conto contemporâneo esteja em outra fábula, A Lebre e a Tartaruga. Assim como no clássico de Esopo, é através do ritmo constante e sereno de Rodolfo que Murilo e sua trupe podem vencer a corrida.
Rodolfo y leveza
Se Ruína y leveza alçou Julia Dantas como uma jovem promissora no cenário literário — sobretudo após o romance ser indicado como finalista no Prêmio São Paulo de Literatura em 2016 — Ela se Chama Rodolfo estabelece a escritora gaúcha como um dos nomes mais interessantes de sua geração.
Ágil, criativo, divertido e cheio de camadas por baixo de seu casco, este é um livro que merece ser lido.