A origem da água │ Ana Cristina Braga Martes
Por Carla Bessa
Em 2011, o fotógrafo americano John Crispin iniciou uma documentação fotográfica de malas encontradas nos porões do então desativado Asilo de Willard, uma instituição psiquiátrica do estado de Nova York. Num trabalho de Sísifo, Crispin fotografou 429 malas, valises e baús com os pertences dos pacientes internados ali entre 1910 e 1960, numa tentativa de resgatar as histórias narradas pelos bens mais íntimos de seus portadores. Porém, para sua surpresa, o fotógrafo encontrou mais da metade das valises sem conteúdo algum.
Objetos pessoais são reflexo da identidade, testemunham e rastreiam a pertença a um lugar, a um tempo. Mas, o que nos diz uma mala vazia? A mala vazia nos fala, em primeiro plano, do sentimento de não-pertença. No entanto, olhando-se com atenção, a mala vazia está cheia do que nela falta, a sua vaziez presta testemunho de planos e sonhos não realizados. A pertença, então, materializa-se como negativo de uma ambição que ficou suspensa, ou, como diz a protagonista de “A origem da água”: “…nada é mais denso que o vazio. O vazio é o invólucro que, ao separar sangue e nervos, aparta minha carne da sua. Estrutura irredutível, nada é mais real que o vazio.”
A mala de Laura também está vazia quando de sua entrada no hospital psiquiátrico, de onde ela nos conta sua história, numa tentativa de ressignificá-la (e ressignificar-se) através da escrita. O enredo é baseado na vida da escritora Maura Lopes Cançado, que se internou voluntariamente num hospício aos 25 anos de idade. Maura nos é apresentada como uma mulher “nascida em uma família patriarcal mineira no início do século XX, que cresceu querendo estudar, trabalhar, escrever e desfrutar de uma vida sexual livre de provincianismos; ousou, assim, participar de um mundo dominado pelos homens. Nesse universo, mulheres não eram bem-vindas e dificilmente obtinham reconhecimento mesmo quando conseguiam romper barreiras quase intransponíveis”.
Trata-se aqui, portanto, de uma ficção que parte de uma biografia real ou, como diz a autora do livro em seu posfácio, de uma “biografia inventada”, usando como base a história de Maura para criar Laura. O texto é narrado em primeira pessoa como o diário escrito pela personagem, saltando entre relato no pretérito e no presente, o que já é um aceno para uma percepção temporal subjetiva: a da memória pessoal.
No início, Laura relata de forma lacônica da sua enfermidade e da ida voluntária para o hospício. Mas logo percebemos uma alternância que permeia o estilo poético de Ana Cristina Braga Martes por todo o livro e que se adequa perfeitamente à voz oscilante da personagem central: por um lado, a racionalidade na reflexão límpida e cortante da própria desestabilidade mental, por outro, erupções de emocionalidade e insubordinação.
Em seguida, revisitamos a chácara da infância, a paixão pelo pai e a festa de aniversário na qual ela se compreende pela primeira vez apartada dos outros por uma “parede de vidro” – expressão usada pela própria Maura Lopes Cançado –, ou “quadrado de vidro”, no qual ela “tinha o poder de ver o vazio entre as coisas, o líquido que se cristalizava”. E é neste ambiente à margem da realidade, no qual sua singularidade fica, a um tempo, protegida e exposta, que ela cria as figuras das primas imaginárias – numa alusão às Erínias, as personificações da culpa e da vingança na mitologia grega – com quem passa a dialogar. Elas a coagem a adentrar o quarto proibido, o quarto dos medos e dos desejos, dos sentimentos impróprios, da violência, da dor e do prazer. O mesmo quarto onde Laura descobriu sua sexualidade com o filho do capataz, tão parecido com o seu amado pai, e na presença de quem “a parede de vidro quase se quebrava”.
No vaivém cronológico lemos sobre sua vida escolar interrompida, sobre o casamento com seu instrutor de aviação, a posterior atração pelo sogro, o nascimento do filho no mesmo ano da morte do pai e da separação do marido. Testemunhamos o desenvolvimento da doença mental, a mudança para a capital do país e o trabalho numa redação de jornal, o prêmio num concurso de literatura e a tentativa de suicídio que antecedeu sua autointernação aos vinte e cinco anos de idade. No cotidiano embrutecido do hospital psiquiátrico, ela se apaixona por um médico, sofre abusos, vive a rivalidade entre as internas com seus “cuspes na cara”, cuja única resposta possível é a indiferença e suas consequências: “…preciso treinar indiferença. Indiferença aqui é fingir-se de morto, mas sei que quem se finge de morto para suportar, está quase lá. Às vezes nada me atinge e não sou, sequer, uma pessoa, porto-me fria e reticente.”
O destino de Laura, assim como o de Maura, é contundente. Em seu caráter extremo, sua vida é única, mas há nela muito da violência estrutural sofrida por todas e todos os que não se adaptam, os desviantes da normatividade. E Ana Cristina Braga Martes conta sua história lançando mão de uma economia sutil, com uma prosa densa e poética que aposta na força da contenção.
A história remete à de Stella do Patrocínio, de Antonin Artaud, de Hölderlin, de Bispo do Rosário e de tantos outros artistas “desviantes” que passaram grande parte de sua vida em hospitais psiquiátricos e encontraram na assim chamada “Arte Bruta” uma porta de saída para o mundo.
Ao terminar de ler o livro de Ana Cristina Braga Martes, lembrei-me de uma frase do Manifesto do Teatro da Crueldade, de Antonin Artaud que, creio, resume toda a intensidade catártica desta arte “desviante”:
“Para gritar, não preciso da força, preciso apenas da fraqueza, e a vontade surgirá da fraqueza, mas viverá, a fim de recarregar a fraqueza com toda a força da reivindicação”.
A autora
Ana Cristina Braga Martes é socióloga e foi professora da Fundação Getúlio Vargas até 2019, de onde saiu para se dedicar integralmente à literatura. Nascida em Varginha (MG), passou sua infância e juventude em São Carlos (SP). Formou-se em Ciências Sociais pela UNESP/Araraquara e doutorou-se pela Universidade de São Paulo (USP), tendo feito parte do seu doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Foi Pesquisadora Visitante na Universidade de Boston (BU) e fez pós-doutorado na Universidade de Londres (King’s College). Publicou e organizou diversos artigos e livros acadêmicos. A origem da água é seu primeiro livro de ficção.

Agradeço muito a sua leitura, Carla. Ela acrescenta, se envolve, segue o livro adiante. Obrigada!