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Cai o pano (As aparências enganam) │ Fenício Sarev

Noite invernal a garoar.

Aproxima-se a figura do antigo teatro. Grossas paredes, no bairro noturno quieto. Gorro e gola à volta do pescoço, máscara cirúrgica no rosto. Dirige-se à porta de entrada nos fundos do edifício, lê o anúncio afixado, trava da maçaneta com suavidade e a faz girar, silenciosamente.

Entrou no prédio.

Ecos de vozes de scripts ensaiados por atrizes e atores ressoam. Contracenam os artistas o ato 2 da cena 1. Poltronas sem assistentes no auditório sob o lusco-fusco, são as testemunhas únicas do palco iluminado pelas luzes da ribalta.

Conta com o fator surpresa, lentamente acercando-se dos bastidores, caçador furtivo em direção a manada inocente do perigo que a ronda. Mochila às costas. Contém os apetrechos do seu trabalho, irá realizá-lo ali onde atuam os profissionais. Treinou por horas em casa, sabe o que tem de fazer, não se equivocará.

Avança, passada a passada.

Sim! É a sua oportunidade de mostrar-lhes quem ele é de fato. Todos o saberão em breve: será manchete nos jornais impressos e on line, comentários dos You Tubers, imagens no Instagram e Tik-Tok, debatido no Twitter, notícia no Facebook

Na penumbra, apalpa a mochila, e guarda a máscara, troca de roupa com destreza. Depois, dá a volta e sobe o par de degraus, para no bastidor, oculto pelo pano de fundo que o separa dos artistas.

Apura o ouvido, a interpretação executada no tablado lhe parece francamente ridícula.

— […] Julieta, por que não estais aqui? O que é feito de ti, amada? Oh, meu grande amor! Como é imenso o que eu sinto por ti, minha…

Confusão de ideias lhe tumultua à mente. Tenta apaziguar-se. De pé, escondido atrás da tela gigante entre ele e as personagens do outro lado, recorda o aviso lido na entrada, fino tecido os divide agora. O peito arfa no derradeiro repasse do plano inusitado. Se assustarão certamente, conclui, ele precisará agir rápido! É a forma de vingar-se do meio artístico que o tem rechaçado amiúde. Só lhe sobrou esse mecanismo.

A impostação das vozes, do outro lado, o traz de volta à realidade. Com a canção melosa de fundo, volta a ajustar as alças da mochila às costas. Ouve a voz de mulher, aguda:

— …conhecerás o meu grande amor por ti, querido Romeu! Já o comprovarás, mas é preciso que me diga, ó amado, onde estás, para onde fostes afinal!?

Põe-se em alerta. Mais alguns segundos e…

De supetão, sua figura soturna e pesada interrompe o epílogo da cena 1, ato 2, de detrás da cortina para o palco como um raio. Célere. As botas de galocha amassando o tablado, enquanto aquelas mulheres e homens recebem o maior susto de suas vidas.

— Chega! — arremata ele, num grito terrorista.

Dispersada a encenação. Recuam todos de golpe. Uma e outro quase despenca no fosso da orquestra, agarram-se aos colegas para não caírem.

— Sou eu, meu amor, o verdadeiro Romeu que tanto imploras! — berra ante o elenco assombrado, com seus olhos postos na figura feminina que interpretava há pouco.

Ela percebe a mochila gorda e os olhos esbugalhados dele, ameaçadores.

— Mas o que…

— Acalma-te! — ordena ele à bela atriz que interpreta Julieta. — Matarei a todos se não me permitirem estar contigo, meu amor!

Murmúrios de pânico.

Ele expele o gorro que vai pousar longe sobre a tábua do piso encerado. Revelando seu rosto pálido, de ar grave, cabeleira desgrenhada em tufos de quase loucura. Ninguém o reconhece. E ante o silêncio sepulcral, ele continua:

— Eu a amo, minha linda Julieta! Sempre esperei por este momento para confessá-lo a ti, e diante de todos, o quanto eu te quero, mais que qualquer outra coisa neste mundo, tu bem sabes… Ninguém estará contra a nossa união, ouviste? sem o teu amor, eu prefiro a morte, minha querida! A morte! A morte! — esbraveja como um vilão, numa voz cavernosa que impõe medo. Todos os olhos postos sobre sua misteriosa silhueta, e bocas cerradas como pedras de túmulo.

Enquanto percorre o cenário, soltando frases de efeito, delirante, arrebatador, a revelar as minúcias do seu catatônico amor não correspondido. Ela Julieta, ele o seu Romeu. Treinou bastante para dizê-las agora de cor e vivamente.

Sua e se exaspera.

E o que parecia uma eternidade aterradora, por fim se cala, exausto, ele desmorona os ombros, até então tesos. Face a transpirar. Eles por sua vez aguardam seu próximo movimento no ambiente lúgubre, estão apreensivos, e num silêncio profundo veem-no arrear a mochila no solo, pouco a pouco. Transtornado.

Mas ele considera que cumpriu finalmente o papel. Veio pelo anúncio no cartaz a procura de ator coadjuvante para a peça que se estreará em breve, espera que os colegas tenham apreciado a “interpretação” convincente, para além do susto que tomaram, é claro! Parecem ainda espavoridos. Bem, fez ele o melhor que pôde. E eles certamente reconhecerão seu natural talento. Tenta sorrir-lhes… bom, agora que o convidem para a vaga a ser preenchida pelo seu natural talento! É o que realmente espera neste tempo pandêmico…

6 comentários em “Cai o pano — (As aparências enganam) │ Fenício Sarev”

  1. Gostei muito do conto, que nos impacta de forma surpreendente, atendendo ao tema de forma bastante interessante, correndo o risco inclusive de levar um zero nesse aspecto de algum leitor desatento. Breve escorregada na escrita e no domínio narrativo. Dei nota 9.

    Domínio da escrita: nota de 0 a 3: 2,5
    Domínio narrativo: nota de 0 a 3: 2,5
    Abordagem do tema: nota de 0 a 2: 2
    Impacto: nota de 0 a 2: 2

  2. Misael Felipe Antônio Pulhes

    1) Domínio da escrita (nota de 0 a 3)
    NOTA: 2,5
    [Em Domínio da escrita devem ser abordadas questões referentes à escrita, como revisão, coesão e estilo]

    O estilo do autor é claro e, desde o início, percebe-se que se trata de um conto de suspense. Há até a expectativa de algo como um clímax de terror.

    Gramaticalmente, há pelo menos 3 ou 4 errinhos relacionados à ocorrência de crase:
    “em direção a [à] manada”
    “passada a [à] passada”
    “Confusão de ideias lhe tumultua à [a] mente”
    “veio pelo anúncio no cartaz a [à] procura de ator coadjuvante”

    2) Domínio narrativo (nota de 0 a 3):
    NOTA: 2
    [Em Domínio narrativo devem ser tratados aspectos do enredo, da ambientação, construção de personagens, e demais elementos da narrativa]

    A ambientação é boa. Consigo ver o protagonista chegando ao teatro, adentrando. O conflito também está enfatizado – apesar de não sabermos especificamente se haveria alguma tentativa de vingança por trás, e que tipo de ação o personagem faria (o que é ponto positivo). O plot twist também é interessante.
    Acho, porém, que a narrativa decresce. Ela se perde naquele meio quando fala de Youtube e TikTok, aliviando demais o clima criado no princípio do conto.

    3) Abordagem do tema (nota de 0 a 2)
    NOTA: 2
    [Em Abordagem do tema deve-se discorrer sobre a adequação e o aproveitamento da temática do certame no texto]

    Abordagem corretíssima e clara. Mesmo sem o título, conseguiríamos perceber em qual ditado o autor se baseou. Além da clareza, a forma de abordagem também foi bem criativa.

    4) Impacto (nota de 0 a 2)
    NOTA: 1
    [E em Impacto o participante pode fazer observações pessoais]

    Um conto correto. O autor consegue criar o clima, encaminha bem a trama.
    Mas, como já dito, sinto que o conto perde um pouco a mão do meio pro final. De novo: a menção ao YouTube e ao TikTok quebram completamente o clima.
    O desfecho do conto, pra mim, também peca. “É o que realmente espera neste tempo pandêmico…” não é uma boa frase para terminar a história.
    Em suma, o conto começa melhor do que termina.

    NOTA FINAL: 7,5

  3. Claudia Roberta Angst

    Domínio da escrita: nota 2,5
    No geral, o conto está bem escrito, destacando-se pelas descrições minuciosas. O autor, eu penso que seja uma autora, mostrou-se à vontade ao descrever o ambiente, ações e sensações. O protagonista só se revela de fato no final do conto. Há um pequeno desacerto quanto à pontuação que não deixa a leitura fluir livremente.
    em direção a manada > em direção à manada
    Uma e outro quase despenca > Ficou sem sentido – além da concordância exigir o verbo no plural
    que interpretava há pouco.> que interpretava havia pouco.

    Domínio narrativo: nota 2,0
    Construção do protagonista na surdina, mantendo o clima de suspense, convidando o leitor a conhecê-lo aos poucos. O autor, eu penso que seja uma autora, mostrou-se à vontade ao descrever o ambiente, ações e sensações. O protagonista só se revela de fato no final do conto. Há diálogos no texto, tanto aquele que pertence à encenação da peça, quanto o outro encenado pelo candidato a ator. O(A) autor(a) revela uma escrita direcionada como uma luz sobre a cena narrada, revelando aos poucos a intenção do protagonista. O ritmo é lento, ganhando agilidade na passagem final.

    Abordagem do tema: nota 1,5
    Se o ditado popular não tivesse sido anunciado no título (As aparências enganam), eu teria dificuldade de decifrá-lo no texto. Sim, entendi, que o protagonista encenou um surto para impressionar a audiência e ser contratado como ator. O que parecia um ato de um doido era na verdade um truque.

    Impacto: nota 1,5
    O conto não apresentou uma linha de suspense que me prendesse, apesar do final ser uma surpresa, leve, mas uma surpresa.

    Nota total: 7,5

    Parabéns pela participação e boa sorte.

  4. Domínio da escrita: 2 — pequenos ajustes poderiam ser feitos com uma leitura crítica realizada por terceiros.
    Domínio narrativo: 2 — ao término do conto senti um “vácuo” no suspense gerado pela mochila do personagem central.
    Abordagem do tema: 1 — o conto se alinha ao título, mas não percebi os Ditados Populares.
    Impacto: 1 — sinto que o conto ficou distante do tema do Desafio.

  5. Domínio da escrita: 2 pontos
    Nota se domínio de escrita por parte do autor, os elemento de coesão foram bem explorados e bem articulados. Esta de parabéns.
    Domínio narrativo: 2 pontos
    Texto cativante pela maneira que convida o leitor a ficar preso no desenrolar dos factos. Uma prosa poética, rica de figuras de estilo que dão lhe a bela que os textos precisam, com um estilo apurado.
    Abordagem do tema 2 pontos
    Como refere o tema as aparências enganam, entretanto o texto revelou isso de forma mais clara.
    Impacto: 1,5
    O impacto é positivo, visto que as pessoas nunca devem nem podem ser julgado pela aparência , é necessária que se tenha um sentido apurado quando se faz um julgamento, partindo dos elementos externos.

  6. Domínio da escrita 3,0
    Escrita boa, clara, correta. Usa palavras pouco usadas de forma natural, não parecem forçadas.

    Domínio narrativo 3,0
    Muito bom. Conduz habilmente o leitor a acreditar que vai haver um ataque terrorista. E, apesar do título já dizer que as aparências enganam, a gente acredita. A tensão é crescente e o personagem vai se revelando pouco a pouco.

    Abordagem do tema 1,0
    Está no tema? Está. Mas quase qualquer conto trata de algo que parece mas não é ou que tem tudo para acontecer mas não acontece. Ou seja, quase todo conto é sobre “as aparências enganam”.

    Impacto 1,0
    É uma boa história, bem escrita, mas não me cativou. Senti falta de um enredo mais elaborado, o limite de palavras bem que permitia…

    Nota: 8,0

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