
Cada macaco no seu galho │ Cézar

Meu pai era charlatão, trabalhou a maior parte da vida fingindo ser economista no mercado financeiro. Também fingia ser engenheiro, filósofo e escritor. Pouco entendia de sintaxe ou estilos. Não era raro vê-lo passar horas e horas plagiando romances, a esse modo, escreveu dois livros, na metade do terceiro, já estava na miséria.
À borda da morte, ele queria me ensinar algo.
— Ganhei essa bicicleta de seu avô e tem mais de cento e cinquenta anos. É a única coisa que restou na minha vida — disse meu pai e soltou um pum. Estive a ponto de perguntar se molhou a cueca, mas a falta de afinidades me conteve. — Antes de te dar, quero que vá numa loja e veja quanto pagam.
Fui à loja, voltei para casa.
— Pai, ofereceram duzentos reais porque tá precisando de reparos — menti descaradamente, na verdade, desprezaram a bicicleta, teve um balconista que até zombou.
Depois me mandou perguntar quanto vale numa casa de penhores. Nessa, nem fui. Mas falei que ofereceram trezentos reais. Menti outra vez, como renegar o pedido a um velho moribundo? Quando ele abandonou a família, passamos dificuldades, mas afinal era meu pai. Na inocência, ele sorriu como quem já soubesse a resposta. Por último, me mandou ir ao museu da bicicleta. Para não carregar o fardo da culpa, obedeci. Não me deixaram nem entrar, mais uma vez matei a verdade e falei que ofereceram mil reais.
— Filho, queria que você soubesse que no lugar certo você será valorizado da maneira correta. Se de repente você for fazer um negócio que não seja lucrativo, não se incomode. Mude de lugar e rodeie-se daqueles que darão o valor que você merece. Nunca fique onde desvalorizam seus pertences. — Depois de disparar a última metralhadora de asneiras, partiu para a terra dos pés juntos. Fiquei arrasado. No fim, ele me deixou apenas uma bicicleta velha. Também, pudera! Abandonou tudo para se tornar romancista fracassado; deve ser por isso que quis ensinar-me a fazer negócios, já que escrever fora a desgraça da vida dele.
Em tempo medido, quatro anos, três meses e sete dias se passaram desde que vendi a bicicleta no depósito de ferro velho por doze reais. Graças a Deus não tive a sina de meu pai. Hoje em dia tenho um bom emprego, muitos amigos e uma família adorável. Mas como nada é perfeito, um anúncio apareceu na linha do tempo do meu Instagram:
“Traga o seu dinheiro para o Clubecripto!”
Esse era o prenúncio de que as coisas melhorariam muito em minha vida financeira. Não queria ser um Zé Ruela, como fora meu pai; além do mais, cansei de aplicar e não conseguir altos lucros imediatos. — Bora ficar bilionário — disse a mim mesmo.
O Clube começou pagando um por cento ao dia. Então fui falar com todos meus amigos para encherem as burras de dinheiro. Logo formei uma página de aplicações. O Clubecripto era nosso guia, mostrava a vida luxuosa dos investidores mais antigos e nos animava a trazer mais pessoas para meter dinheiro no investimento.
— O que vocês estão fazendo para captar clientes? — O administrador financeiro mandou a pergunta no direct.
— Estou mostrando o extrato dos meus rendimentos — respondi. Além disso, acabei de trazer quase todos os empresários do meu bairro.
— Quanto maior o investimento, melhores são seus ganhos — escreveu ele.
Ao receber o choque de incentivo, vendi meu carro, minha casa e apliquei todo o dinheiro. Logo todos os meus conhecidos venderam tudo para entregar ao investidor.
— Essas entradas gigantescas de capital darão um excelente retorno — escrevi ao grupo.
— Minha mãe é aposentada, farei um empréstimo no nome dela e aplicarei. Vou dar a ela uma casa mobiliada — escreveu um garoto. Achei justo chamar os menores de idade, já que a riqueza está para todo mundo. Mas, quando ele levou a mãe no banco, o gerente invejoso os advertiu:
— Não faça essa loucura, que isso é golpe… — Mesmo contrariada, a senhorinha pegou o empréstimo e entregou tudo ao filho. O garoto postou uma foto ao lado da mãe ao entregar o dinheiro via Pix ao investidor.
— Há algumas pessoas dando golpe na internet com criptomoedas — postaram alguns investidores para debate em nosso grupo.
— Golpe? Eu gostaria de ver isso a fundo — escrevi.
Fui pesquisar e descobri que os outros clubes de investimentos eram mesmo falsos, mas o nosso estava pagando tudo em dia, além do mais já tinha quadriplicado meu capital. Isso no nosso clube era impossível. Os outros membros seguiram meu raciocínio e mais ninguém se atreveu a postar comentários negativos no grupo. E mesmo os mais intrigados com o ocorrido, não contradisseram o investidor.
Claro que ninguém continuou com a investigação; a busca pela riqueza é igual a busca pelo paraíso: ninguém indaga se aquilo é realidade ou mito, pois o medo da perda é forte e cala a todos. Mas, no outro dia, a metade das pessoas começou a pedir o resgate do dinheiro. Para nossa alegria, todos que pediram, receberam com juros. Não passou sequer uma semana, a ganância os trouxe de volta ao grupo. E quase todo mundo enriqueceu.
Quem lê meu relato sabe que o começo da primeira parte não tem nada a ver com a segunda. Na primeira, plagiei o conto “Os mortos” de James Joyce e, na segunda, plagiei o conto “O santo que não acreditava em Deus” de João Ubaldo Ribeiro, inclusive os dois são bem custosos de ler, vai lá e confere para ver se estou mentindo. Fiz isso descaradamente, e se você conseguiu chegar até aqui ainda achando o conto divertido, enxuto e criativo, procure um psicanalista. Para finalizar esse desabafo horroroso, saiba que nunca apliquei meu dinheiro em nada, nem ganhei bicicleta do meu pai. Na verdade, o velho tá vivinho da Silva. Ao escrever essa pérola, perdi durante horas e horas cada uma das pregas da minha bunda. Cansado de sofrer na cadeira, sem criatividade e fôlego para chegar ao final, enchi o conto de asneiras. Também, pudera! Filho de peixe, peixinho é. Nunca aguentei patrão nem adquiri profissão; além de charlatão, tenho todas as qualidades de um escritor de meia tigela; meu ego é enorme e não gosto de ler nada de autor amador. Muitas vezes participo dos certames achando que meu conto vai arrebentar a boca do balão, mas, quando leio as críticas, meu mundo desaba. Não devolvo o favor da leitura a ninguém. Não aguento ser desrespeitado. No fundo, sei que ninguém lê o que escrevo fora dos concursos, e não vendo nenhum romance. Aliás, meus livros, além de ruins, são caríssimos.
Passo o dia sonhando em ficar rico e famoso com literatura; infelizmente, meu maior interesse está onde não tenho dom, habilidade ou competência. Ou seja: não estou no meu próprio galho.
“Cada macaco no seu galho” é um conto bem escrito, interessante, com apenas dois deslizes no domínio da escrita (notei uma incoerência) e com impacto que poderia ser maior. Dei nota 8.
Domínio da escrita: nota de 0 a 3: 2,5
Domínio narrativo: nota de 0 a 3: 2
Abordagem do tema: nota de 0 a 2: 2
Impacto: nota de 0 a 2: 1,5
1) Domínio da escrita (nota de 0 a 3)
NOTA: 2
[Em Domínio da escrita devem ser abordadas questões referentes à escrita, como revisão, coesão e estilo]
O autor escreve, em geral, com correção. O texto é coeso na medida de sua proposta, com três partes distintas e bem claras – sendo a última, a explicação do narrador.
Quanto ao estilo, duas marcas mais fortes: a falta de subtexto, o contar detalhadamente cada passo da cena; e, em segundo lugar, essa brincadeira com o leitor, que acaba sendo uma faca de dois gumes. Parece que o autor se coloca numa sequência de raciocínios “ad infinitum” maisou menos assim: vou fazer uma brincadeirinha aqui; seguido de: mas eu sei que é brincadeira, e que é bobo, e eu mesmo direi isso antes de você dizê-lo; mas ISSO em si também é bobo. No fim das contas, não deixa de ser interessante que o desabafo soe como um desabafo, e a gente fique se perguntando se o autor está falando sério ou se conseguiu sucesso na empreitada de fazer essa brincadeira metalinguística. Mas raramente isso é bem sucedido naquilo que é o objetivo principal da obra literária, que é o efeito estético/emocional.
Além da “brincadeira” principal e essencial do texto, há um modo de escrever bem humorado, como, por exemplo, no trecho: “disse meu pai e soltou um pum. Estive a ponto de perguntar se molhou a cueca, mas a falta de afinidades me conteve”. A frase em si é engraçada, debochada. No entanto, no decorrer do texto se mostra sem propósito.
2) Domínio narrativo (nota de 0 a 3)
NOTA: 1,5
[Em Domínio narrativo devem ser tratados aspectos do enredo, da ambientação, construção de personagens, e demais elementos da narrativa]
Aqui, é tudo muito raso. Óbvio que a intenção do próprio texto não é criar um personagem com background, um ambiente descritivo. Mas uma coisa é a ideia metalinguística em si; outra: a forma de fazer essa brincadeira. E principalmente a inserção do segundo trecho – sobre criptomoedas – parece empobrecer a linha narrativa.
3) Abordagem do tema (nota de 0 a 2)
NOTA: 2
[Em Abordagem do tema deve-se discorrer sobre a adequação e o aproveitamento da temática do certame no texto]
Interessantemente, minha maior pontuação irá para a forma original como o autor abordou o tema. Mesmo que a narrativa pudesse ser mais sutil e chamativa (o que comentei e descontei acima), o tema está lá, e está de uma forma bem clara e distinta.
4) Impacto (nota de 0 a 2)
NOTA: 1
[E em Impacto o participante pode fazer observações pessoais]
O máximo a que se chega numa empreitada dessa é ser convincente. Eu até fiquei pensando se o autor estav mesmo desabafando ou brincando de desabafar. Mas esse é o máximo da obra. E literariamente, me parece muito pouco, um desperdício.
NOTA FINAL: 6,5
Domínio da escrita: nota 2,0
No geral, o conto está razoavelmente bem escrito, embora algumas passagens cruas/escatológicas sejam desnecessárias, fora do contexto.
À borda da morte > o mais comum é dizer “à beira da morte”, mas achei interessante a troca por “borda”
[…] como renegar o pedido a um velho moribundo? > […] como negar o pedido de um velho moribundo?
Domínio narrativo: nota 2,0
Eu diria que houve uma “desconstrução” do narrador/protagonista, já que ele mesmo se desfaz da história que acabou de contar. Caímos no conto do vigário? Muito possivelmente. A ambientação engloba o Tempo Narrativo e o Espaço Narrativo. O narrador se refere a dois momentos: o antes da suposta morte do pai e o após, quando revela que tudo o que contou é plágio e seu pai está vivo. A inclusão de uma narrativa dentro da outra é um procedimento arriscado, pois pode confundir ou aborrecer o leitor.
Abordagem do tema: nota 1,5
Há a citação de dois ditados populares no conto: “Filho de peixe, peixinho é”; “Cada macaco no seu galho”. Além disso, está subentendido na história do Clubecripto o golpe/conto do vigário. Nenhum deles foi desenvolvido de forma linear, mas estão presentes na narrativa. E finalmente, ao final, temos também “as aparências enganam”. Tudo junto e misturado.
Impacto: nota 1,0
O conto apresentou um final até que surpreendente, como se fosse uma “pegadinha”, mas em um tom que me pareceu um tanto brusco.
Nota total: 6,5
Parabéns pela participação e boa sorte.
Domínio da escrita: 3 — é muito bem escrito! (já até agendei o psicanalista)
Domínio narrativo: 3 — sou atraído pelo deboche, ironias…
Abordagem do tema: 1,5 — o parágrafo final “costura” muito bem o conto com o título, assim como com o tema do desafio.
Impacto: 1,5 — enquanto lia, criei expectativas com o final. E fui bem recompensado.
Domínio da escrita: 1
Domínio da escrita esta no nível aceitável. Os elementos da coesão foram bem aplicados.
Domínio narrativo: 1,5 pontos
A principio, ao ler o texto, a memoria já acusava algo, um deja vu ressurgia a cada linha do enredo, pensei em abandonar a leitura e trazer provas sobre autentico plagio, mas intuição obrigava me a terminar a leitura para não ter que condenar, olhando apenas uma face, foi quando ao terminar a leitura que deparei me a confissão criativa do autor.
Abordagem do tema 1 pontos
Foi uma boa abordagem, pois a curiosidade apertava mais cada vez que lia o texto.
Impacto: 1
A fidelidade e a humildade artística devem ser a base na composição de qualquer obra literária.
Domínio da escrita 3,0
Escrita correta e clara.
Domínio narrativo 3,0
Narrativa bem estruturada e agradável de ler.
Abordagem do tema 0,5
Entendi a relação do texto com o cada macaco no seu ganho, mas me pareceu meio forçado, só para entrar no tema.
Impacto 0,5
Fiquei com a sensação de que o conto prometeu e não cumpriu. Começou uma narrativa, engatou outra e terminou negando as duas. Foi a intenção incomodar o leitor? Se sim, missão cumprida, mas me senti levemente enganada. E um enganada ruim, diferente de um bom plot twist ou inversão de expectativas.
Nota: 7,0