Laranja como o rio │ Anderson Prado

A pele flácida do braço da velha balança na cadência monótona do ir e vir do rodo. A seus pés, a água densa e barrenta empresta a tudo que toca sua cor ferruginosa. Outrora multicor, tudo o que fora ontem a casa da velha é, agora, de um monocromático laranja-terra.
Impulsionada pelo rodo, a água brinca com os pés, as canelas e as bordas da camisola, e para eles também empresta seu alaranjado. De tempos em tempos, a velha para e, com as costas das mãos, seca o suor que insiste em lhe empapar a testa e o colo, num permanente protesto contra o árduo trabalho de limpar e minimizar as perdas da última enchente.
Enquanto trabalha, a velha recorda os momentos tensos da noite passada, quando o muro e o portão de sua casa por pouco não impediram o socorro dos vizinhos:
─ Carlos! Carlos! Espera! A dona Teresinha!
─ O que tem ela?
─ Você a viu?
─ Não! Vamos, Bruna, entra no carro! A água está subindo!
─ A dona Teresinha, Carlos! Alguém tem de chamar ela!
─ Droga, Bruna!
Carlos deixa o carro e torna a mergulhar os pés nos quase quinze centímetros de água gelada, deixando atrás de si três filhos assustados e a esposa que tenta, em vão, tranquilizar as crianças:
─ Não se preocupem! Papai já volta!
No portão de dona Teresinha, os gritos insistentes de Carlos são levados para longe pelo farfalhar do vento. Do carro, a voz da esposa acode providencial:
─ Carlos, você tem que pular!
Não há tempo para titubear. O muro é alto; o portão, indevassável. No entanto, Carlos, valendo-se de uma força e de uma destreza que desconhecia, apoia um dos pés no vão entre o portão e o muro, e se lança para dentro do terreno de dona Teresinha. Quando atinge o solo, espanta-se com a água que, no terreno baixo, lhe sobe quase até o joelho.
Depois de chamar, insistentemente, dona Teresinha e esmurrar a porta da frente da casa, dirige-se a cada uma das janelas, sem saber exatamente qual ocultaria o sono da velha. Quando contorna a casa e atinge a porta dos fundos, sente a fome voraz do rio lhe puxar para os fundos do terreno.
Cada vez mais alarmado e já duvidando que a velha realmente estivesse no interior da casa, Carlos decide voltar para sua família e retomar a fuga.
Enquanto isso, dentro da casa, acordada pelas insistentes batidas na janela, dona Teresinha ainda se demora na cama a decifrar os enigmas que aquela noite lhe reservara. Quando vence o torpor do sono tão abruptamente interrompido, dona Teresinha encontra a água já quase na altura do colchão. Num átimo, reconhece mais uma enchente traiçoeira a lhe espreitar a vida.
No escuro, e metida nas águas até a altura das canelas, dona Teresinha tateia de parede em parede até o prego que lhe fazia as vezes de chaveiro. Quando finalmente abre a porta da frente, a água represada quase a derruba ao invadir a casa e estender as margens do rio até o remoto de cada cômodo.
Segurando as bordas da camisola com uma das mãos, dona Teresinha atravessa o quintal da frente e abre o portão a tempo de encontrar o socorro dos vizinhos:
─ Carlos, olhe! É a dona Teresinha!… Dona Teresinha, vem, vem! Entra!… Crianças, cheguem para o lado. Deixem a dona Teresinha sentar.
Foi apenas na manhã seguinte que as duas famílias tornaram às suas casas para contabilizar os prejuízos. Eletrodomésticos, quem os tinha, perdeu; mas dona Teresinha, que há muito aprendera que o progresso era avesso às águas, teve para lamentar, de seu, apenas a geladeira velha cujos estalidos embalavam seu sono. Sofá e colchão, dona Teresinha arrastou até a varanda, lavou e pôs ao Sol nos fundos do quintal para secar. Armário e estante, as próprias águas cuidaram de ruir: suas tábuas, estropiadas, dona Teresinha levou até a rua e lançou na pilha de escombros que os vizinhos já haviam cuidado de edificar.
Quando a tarde chegou, encontrou dona Teresinha a embalar as águas do rio no seu incessante ir e vir de rodo intranquilo. Não era a primeira vez que enfrentava aquelas águas, tampouco, estava certa, seria a última: naquela mesma tarde talvez o horizonte lançasse sobre as margens do rio nuvens negras e bravias.
Em seu íntimo, a velha se esforça para odiar o rio não mais do que odiara o marido, pescador, que a trouxera de um longínquo e seco interior para aquela beira d’água. Na primeira vez em que dona Teresinha vira as estreitas margens se alargarem e tomarem, pouco a pouco, cada centímetro do quintal, esgueirando-se entre as ondulações do terreno, superando minúsculos montes, ocupando ínfimos vales, contornado pés de bananeira e mangueiras, dissolvendo canteiros e afogando verdes hortaliças, dona Teresinha foi tomada por uma atração e paralisia irresistíveis. Para demovê-la de seu estupor, o marido tivera de gritar:
─ Teresinha, acorda! Tire as crianças da casa e, depois, volte para me ajudar a subir os móveis e eletrodomésticos!
Naquele dia, com um filho no braço e o outro sendo arrastado pela mão, ambos chorando e gritando sob a chuva que caía inclemente, ela, pela primeira vez, odiara e amaldiçoara o marido, rompendo com os votos que, tão inocentemente, fizera perante Deus e a comunidade. Sentiu-se traída pela promessa que a obrigaram a fazer, com menção da alegria e da tristeza, da saúde e da doença, da riqueza e da pobreza, mas que deixara de fora vento, chuva, raios e trovões, crianças molhadas e assustadas chorando e gritando, tremendo até os ossos a cada ribombar dos céus, fugindo das águas que a tudo invadiam, destruíam e obrigavam a um novo começo.
Mesmo odiando o esposo, mas ainda o obedecendo, Terezinha deixou os filhos aos cuidados de uma vizinha, na parte alta do lugarejo, e voltou ao encontro do marido para ajudar a empilhar os móveis uns sobre os outros ou, quando isso não era possível, ao menos os soerguer sobre lajotas ou outros apoios, fazendo-os tão altos quanto possível. Quando o casal finalmente deixou a casa, levando nos braços o televisor e o rádio, envoltos na lona que há pouco cobria o galinheiro, a água já tomava a varanda e adentrava a cozinha.
Da parte alta do lugarejo, o casal assistiu às águas subirem até transformarem a casa numa tímida ilha. Para os adultos, foi uma noite insone. Mesmo para as crianças, o sono, arisco, demorou para chegar, exigindo de Terezinha muitos embalos. Enquanto se desdobrava para trazer aos filhos algum esquecimento, Teresinha tentou se convencer a, na manhã seguinte, não voltar para aquele homem nem para aquele rio, mas a aurora e seu refrescante despertar passarinheiro levaram consigo as águas excessivas e a vontade tímida de Teresinha, que, sem um outro homem para si, nem um outro pai para seus filhos, voltou para casa para repetir a mesma vida.
Desde então, Teresinha passou a odiar o homem que amava e, de tanto o odiar, passou a amá-lo ainda mais e, a cada fim de dia, interrompia seus afazeres para perambular pela cozinha a espreitar o quintal e, bem lá ao fundo, o cais franzino mergulhado no rio turvo. Quando a tarde avançava em demasia esquecendo de trazer ao lar o pescador, Teresinha angustiava-se e, por mais esse motivo, amaldiçoava o rio que, não satisfeito em invadir o quintal e a casa, inutilizar os eletrodomésticos e arruinar os móveis, pretendia, desta feita, fazê-la viúva.
E a mesma relação que, durante anos, manteve com o marido, Teresinha manteve com o rio: todas as noites, era o cheiro de rio de seu homem pescador que a procurava sob os lençóis e, dessas procuras, o rio deu-lhe filhos – uma prole que o próprio rio, muitos anos depois, cuidou de levar para bem longe, para ocupar outras margens e outras camas, numa tenacidade infinita de águas condenadas a percorrer sempre os mesmos caminhos, mas, ainda assim, águas outras, águas moças, águas novas.
Durante anos, Teresinha e o marido comungaram da felicidade de ver o rio aportar vivo ao cais, debatendo-se em cestos carregados de peixe, devolvendo com sobra o que, em momento de destemperança, retirara ao transbordar incontíveis excessos. Em meio às contradições do rio, que tirava, mas também dava, certa vez, quando as margens deixaram de subir, Teresinha flagrou-se desejando as chuvas e temendo que a falta de vazão do rio afetasse o meio de subsistência da família.
Por isso, mesmo após perder quase tudo para o rio, inclusive o ninar dos estalidos de sua antiquíssima geladeira, a velha Teresinha se entrega, mais resoluta do que nunca, e sem esmorecimentos, à incansável tarefa de pedir licença ao rio, embalando-o docemente no ir e vir do rodo, convidando-o a deixar a casa e tornar às suas margens.
Quando se nasce rente ao chão, rastejar parece um movimento bem natural. Teresinha não conheceu outra vida que não se deixar cortejar muito cedo por um homem, no seu caso, o primo Luís, pescador, que, em visita ao interior, fisgou Teresinha e a arrastou para aquela margem de rio, dando-lhe um par de crianças intranquilas e, com isso, por mais dezesseis anos mantendo-a ainda mais enredada naquela vida de transbordos.
Crescidas apenas a medida do suficiente para deixarem precocemente o lar materno, as crianças se foram, deixando para trás uma mãe já velha, mesmo em meio aos trinta anos, e que não sabia fazer outra coisa que não cuidar de crianças, da casa e do marido pescador. E, nesse cuidar, Teresinha passou as próximas décadas, até um dia, já viúva, ser encontrada por um jovem vizinho, sentada num sofá secando ao Sol no meio do terreno, imóvel e serena, não branca como cera, mas laranja como o rio:
─ Dona Teresinha! Dona Teresinha!… Dona Teresinha, é o Carlos! Com licença, estou entrando!… Oi, dona Teresinha, vim ver se a senhora precisa de alguma ajuda… – e, vendo Teresinha recostada no sofá, Carlos ainda supôs, por um instante, que a velha apenas dormia, mas, percebendo o alarme, acionou os demais vizinhos e o socorro, tentando, pela segunda vez em menos de vinte e quatro horas, mas desta feita sem sucesso, salvar a vida da velha Teresinha, que morreu, deixando o rio viúvo.

Prosa admirável, propõe um jogo dialético entre uma mulher e o rio. As águas do rio, que invadem a vida das pessoas e as transformam, servem como metáforas dos movimentos incessantes da própria vida. Depois do jogo de contrários entre natureza (rio) e o humano (Dona Teresinha), os elementos se reconciliam ou, no mínimo, aprendem uma convivência em que, interdependentes, ambos se alimentam. O toque melancólico, ao final, mostra como, tal qual as águas fluidas do rio, a vida humana, num dado momento, se dilui, arrastada pelas águas do mistério da existência.
Parabéns, Anderson! Traga-nos outras águas, e nos permita o banho em sua poderosa prosa.