Franco Ferpa Camargo │ Andreas Chamorro

foto de @liza rusalskaya
Aqueles desgraçados. E o pior é que sabem sim o mal que fizeram. Não estou sendo o primeiro perseguido. Em 2031 mataram uma senhora em Campo Grande. A manchete falou em latrocínio e roubo de obra de arte. A senhora tinha duas tatuagens de Franco Ferpa; dois retratos, o filho e o neto, uma ao longo da costela e a outra no abdômen. O corpo sem os enxertos foi encontrado quase putrefato, os ladrões foram pintados como simples marginais, deixando de lado qualquer menção à maestria cirúrgica dos dois na retirada dos pedaços de pele. O material foi a leilão. Não sabemos até hoje quem comprou. O que sabemos é que as duas tatuagens foram aparecer, anos, depois, no acervo dos Spinna. Hoje, a dupla de tatuagens o pai e o filho rodam o globo, sendo expostas junto das outras obras do tatuador Franco Ferpa. Por isso o medo que me treme o corpo todo agora é culpa dos irmãos Spinna. Desgraçados, antes que meu pai nunca tivesse sido vizinho de Franco Ferpa. E agora, digito isso aqui de dentro da casa de Franco Ferpa, onde moramos há quinze anos, desde que meu pai a comprou do próprio seis anos antes do tatuador morrer. E sem saber que, dois anos depois de morrer, seus trabalhos se elevariam ao estado de arte devido a fácil identificação de sua técnica. O cara era um gênio mesmo, só não viveu como se soubesse disso. Pelo contrário, Franco Ferpa a maior parte de sua vida foi chamado de Ferpa Camargo Franco, o nome inteiro, ou só Ferpa Camargo e Ferpa, conhecido tatuador da Vila dos Remédios, bairro católico da região oeste da cidade, erguido e nascido há cento e cinquenta anos, homem simples, conhecidíssimo, mas somente um tatuador e nada além disso. Um pintor de pele e papel. Esse papo de gênio surgiu com os Spinna.
O melhor que faço é digitar isso aqui. Se eu for passar as próximas horas em silêncio ficarei louco e descerei daqui e tudo estaria perdido assim. Papai dorme. Ajustei seu aparelho neural para emitir um ambiente de esquina de rua, passos, conversas, bares e risos. A bateria está 140%. Eles podem aparecer a qualquer momento lá embaixo, na cozinha. Os filhas-da-puta dos Spinna, devem estar no bem bom ou falando seus erres dobrados em museus por aí ou no meta. Quando que Ferpa Camargo poderia imaginar isso? No fim de sua vida eram esses os sons que ouvia o dia todo. Isso porque Ferpa Camargo quando jovem fez parte de uma banda de metal e quando já pai e casado e tatuador fez permutas de complexas tatuagens por guitarras, pedais e uma bateria. O sucesso que talvez tenha almejado em meados de oitenta veio depois de morto. E é engraçado, porque o filho do Ferpa Camargo ficou famoso, e eles não se davam bem, os dois eram gênios e iguais e um dia o filho falou que alguns só faziam sucesso depois de mortos e Ferpa ficou furioso fazendo o filho chorar. Li isso na biografia que a Letícia Spinna escreveu. Sim, porque não pude escapar delas, nem da biografia, nem da Letícia.
Quando ela ainda estava escrevendo o livro, nossa casa recebeu sua visita. Algo impossível de não acontecer, ela teria que passar pelo endereço de nascença do Franco Ferpa. Foram dias e dias da presença de Letícia na casa. Ela trazia o próprio café e escrevia à mão como voltou à moda entre os burguesinhos. Se eu soubesse que cinco anos depois estaria escondido e apavorado. Não sabia de nada dos bastidores. Não sabia que papai contar as histórias de vizinho do Franco Ferpa nos causaria mal. Essa história de tatuagem e arte naquela época ainda era discussão e os Spinna somente exibiam cinco peças, seu pequeno acervo com as tatuagens dos tios mortos. Letícia ficou encantada com meu pai, tudo bem que ele não chegou a conhecer Franco Ferpa quando jovem, mas testemunha de algumas de suas criações, isso meu pai foi sim. Quando Ferpa Camargo, cansado do peso que os bicos de alumínio faziam na hora de tatuar, teve a ideia de produzir bicos de acrílico. Quando Ferpa Camargo tatuou seu famoso Ozzy Osbourne na coxa do sobrinho na convenção dos anos 2006, meu pai estava lá, eu não era nascido mas ele estava lá. Letícia extraiu toda lembrança que meu pai alcançou. Algumas ele repetiu até se embaralhar. Eu só pude contribuir com o que eu lembrava do velho Ferpa, que foi a época da decadência, quando o câncer além de lhe tirar a vida lhe tirou o direito de tatuar. Eu e meu pai aparecemos em várias notas de fim de livro. Meu pai até hoje não soube o que é isso. E tudo isso para estarmos correndo risco de vida agora.
Os Spinna sabem de tudo e mesmo assim mantém uma máfia desgraçada. Eles sabem, a irmã escreveu e o irmão falou no documentário que ele fez, que nunca Ferpa foi rico e famoso, só se estivéssemos falando das dimensões da Vila dos Remédios. Já pai de uma menina, já passado dos quarenta, Franco Ferpa ainda fazia suas permutas. Quando quis uma tevê tela plana e um home theater, tatuou o que depois ficou conhecido como Mina, um grande retrato de Drácula segurando o grande amor, tatuado nas costas de uma mulher que depois comprou os aparelhos no cartão de crédito. Mina hoje é avaliada em doze milhões de reais.
O Ferpa era um gênio, mas seus objetos eram feitos de músculos e pele, ele não iria imaginar que seria responsável por assassinatos. Talvez até o do meu pai. Talvez até o meu! Ele não iria imaginar que criar o bico de acrílico, a tatuagem realista de objeto vivo, que tatuar sempre livremente sem decalque, que inventar uma tatuagem mais vívida nas peles mais retintas através de um fundo esbranquiçado (essa é até hoje a grande polêmica com seu nome), que trazer boas tintas para o Brasil, investir no pontilhismo, que ser pioneiro na técnica do freehand, que esses talentos iriam um dia matar. Quem sabe disso são os Spinna.
Letícia não é tonta, ela soube facilmente que meu
pai tinha seis tatuagens de Franco Ferpa. Só que eu não pensei que iria demorar
tanto, quase pensei que não fosse acontecer, quase que sigo vivendo
completamente esquecido disso. Soube dos assassinatos há poucos anos. Comecei a
ter medo mesmo disso quando os caras se mudaram para a casa da falecida dona
Elza, essa sim, testemunha da criança Franco Ferpa. Isso tem só alguns meses. Papai
não entende nada disso, o que complica as coisas. Mês passado, voltando da
avenida peguei os caras falando com meu pai pelo portão. Me escondi atrás de
uma van e fiquei olhando. Mais tarde meu pai disse que eles queriam falar com
seu filho, ou seja, comigo. Não adiantou eu tentar explicar para meu pai que
corríamos perigo, além de discordar de mim em relação à índole dos caras ficou
repetindo que prometeu para o Ferpa que cuidaria daquela casa até morrer. Mas
tínhamos que sair de casa. Mas meu pai não faria isso. Eu sei que eu poderia
fugir daqui e deixar meu pai, já é mais que comum a quebra de laço parental,
tem até propaganda disso. Mas eu acho que também tenho apego à casa e à Franco
Ferpa. E esse apego talvez tenha feito eu ficar e tenha feito eu fazer meu pai
ficar. E agora estamos nesse sótão porque acordei e percebi que tinham entrado
na casa de madrugada e rasgado a parte traseira do pijama do papai, deixando à
vista toda a tatuagem que vai da nuca às nádegas. E eles não mataram meu pai ou
o sequestraram e aí que o medo tomou conta de mim a ponto de eu ter pânico de
fugir daqui. Não era a tatuagem do meu pai a que eles queriam, tinha na casa
uma tatuagem mais cara. Depois da primeira fase de quimioterapia e a retirada
da bolsa de colostomia, Franco Ferpa tentou voltar a tatuar. Em três meses de
insistência tatuou duas pessoas. A segunda tatuagem (a silhueta de um cavalo
feita em pontilhismo) foi a última que fez na vida. Essa tatuagem agora encosta
na madeira dos fundos do sótão, onde eu apoio minhas costas.

Bacana!
A ideia de tratar tatuagens como obras de arte valiosas e, portando, objeto da cobiça de ladrões de arte me soou muito original. Eu ainda não havia lido nada parecido. Parabéns, Andreas!
Parabéns, pelo conto. Muito autêntico. Adorei!