Spread the love

A beleza da vida │ Ponciano Correa

“Tudo dentro de ti está confuso e, no entanto,

penteias a superfície.” (Shakespeare)

 

 

− Virgem?!

 

Ruborizou ao ouvir o assombro ecoar no salão. De fato, era a mais pura verdade. Cumprira religiosamente a promessa, feita pelo pai, de sequer cortar as pontinhas dos cabelos até estar muito bem casada. Desde cedo, aprendera com o progenitor as maiores virtudes de quem usa saias: a castidade, o desapego aos bens e a obediência.

 

Ele gritou, sim. Quem nunca?! Mas logo se situou. Era enorme a responsabilidade de ondular melenas nunca dantes trabalhadas. Modelava os cachos desde a cintura, enquanto imaginava se um dia teria a oportunidade de subir ao altar também. Quem dera tivesse a mesma sorte! Ter uma casinha, um lar doce lar, de repente, até filhos… Ai, ai! Tão jovem e inocente…

 

***

 

− Grávida?!

 

Queria um corte na altura dos ombros. Melhor ainda: um pouquinho mais abaixo. O pai autorizara, e o marido concordava. Como ia ser mãe, precisava se preparar para o grande momento da vida… dela.

 

Babado! Era mesmo surpreendente para ele, depois da troca de olhares na cerimônia de enlace matrimonial…

 

***

 

− Joãozinho?!

 

Não. O recém-descoberto amante do marido atendia por outro nome. Mas pouco importava nessa altura da vida. Tinha de ser prática, pois haviam lhe caído sobre os ombros todas as responsabilidades da casa. Todas não, infelizmente. O pai cobriria as despesas, mas, fazia questão de lembrar, a vergonha era só dela mesmo, pois não percebera antes de contrair núpcias, nem conseguira segurar após… Ela ouvira calada. Fazer o quê? Precisava se virar nos trinta, ainda que fosse para se revirar em si mesma, pleníssima por fora e escandalosa por dentro. A principal meta era sustentar o filho.

 

Poderosa! Mas tolinha… Jamais vira o pai ou irmão indo ao banheiro, por isso nunca desconfiara do @ dando pinta, nem quando ele ficava sentadinho no vaso para o número um cantarolando a nova da diva pop…?! Tá bom! Se fosse só por isso… Queria ter também quem lhe pagasse as contas. Se bem que só assim mesmo, quitando os próprios boletos, evitava os palpites sobre a vida dele. Liberdade total!

 

***

 

− Ruiva?!

 

Queria ser uma mulher de cara nova! Conhecer gente nova. Permitir-se novas experiências. Picantes, de preferência! Ser feliz ao lado de quem a valorizasse. E pudesse servir de referência ao filho dela.

 

Musa arrasadora! Aos poucos dilapidara o coração de pedra do pai… E agora ela própria queria se converter numa joia rara. Num rubi! Certa ela… Quem nunca desejou um bofe para chamar de seu?!

 

***

 

− Careca?!

 

Teria de ser forte durante todo o processo. Preocupava-se: e se o pior acontecesse, como ficaria o rebento? Mas não queria, nem em último caso, mais ninguém se preocupando.

 

Guerreirinha! Como se não bastassem todos os outros problemas em família, agora uma ameaça de morte vinda do interior do corpo frágil. Por Deus! Ansiava o milagre de a tintura anterior ser a única química sobre ela… Senhor Amado! Num rompante teimou em ficar ao lado da amiga, viesse a porrada do destino como viesse…

 

***

 

− Linda!!

 

Lutou bravamente até o fim! Dali em diante, seria só com o avô.


Ninguém aprovara a presença dele na cerimônia de despedida, podia perceber pelos olhares fulminantes e as bocas tortas pela fofoca. Mas, foda-se! Antes do último suspiro, ouvira da confidente: tinha-lhe sido o homem mais fiel em toda a vida. Nunca lhe passara a mão na cabeça, embora tivesse lhe alisado os cabelos enquanto existiam. Durante a breve vida, ela realmente não sonhava com mãos lhe tapeando o sexo, como fizera o ex, ou entregando esmola, como o pai costumava fazer. Já quase sem voz, a amiga confessara que, antes mesmo da convalescência, o maior desejo dela sempre fora um par de mãos espalmadas às costas, selando um abraço… Tão bom.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.