Relato de um linha fora │ Pedro Paulo

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Painho já havia sentenciado que seu filho não tinha dado certo “nem nos estudos, nem jogando bola”. Dissera que no futebol eu era um linha fora, no colégio, um zero à esquerda. Acreditei nisso por um tempo, mas só me dei conta do que isso significava depois de um dia, a última vez com que compartilhei algo com ele. Cheguei em casa afobado, ainda suado do baba, roxos aqui e ali, sangue seco nos ralados dos cotovelos e joelhos. Eu gostava de chegar machucado, achava que assim ele veria que eu me esforçava.

Passava um jogo na televisão. Ele não gostava que assistisse com ele, entre seus gritos com a tela e as goladas na cerveja, perguntava-me opiniões, cutucava-me, ficava logo aborrecido com o meu silêncio e depois silenciava ele mesmo, de cara fechada. Quando parecia melhorar, era o mesmo que eu não estivesse ali. Uma vez desci do sofá, saí. Ele não percebeu, eu jamais retornei. Naquele fim de tarde, passava mais um jogo. Mainha veio logo me acudir, perguntar das feridas, o que acontecera, eu dispensei seus cuidados, disse que estava bem, queria falar com o meu pai. Na minha afobação, posicionei-me em frente a ele. Não consegui dizer a primeira palavra, uma braçada mais ou menos contida me pôs de lado, ele disse “Peraê”. Gaguejei, olhei de lado para a minha mãe, que também tinha a boca aberta, um protesto a ser dito, lágrimas à beira dos olhos.

Apertei meus pequenos punhos, engoli em seco. Na televisão, o narrador avisava que o Artilheiro da Temporada sobrara com a bola do contra-ataque malsucedido dos oponentes. Tão logo o Artilheiro deu seu primeiro passo, eu, o linha fora, comecei o meu relato. Painho não desgrudava os olhos da televisão e, estranhamente, lembro que isso fez ser mais fácil.

Disse que “Painho, você não acredita, não acredita mesmo! Eu tirei, painho, os meninos perderam lá na frente e aí Jeanzinho veio correndo”. Jeanzinho era o nosso Artilheiro, por assim dizer, mesma idade da turma, mas um palmo mais alto, o mais jeitoso com os esportes, fosse o jogo que fosse. A bola sobrou do nosso medíocre contra-ataque, caindo bem nos pés desse craque. Eu não participara da jogada, é claro, era consenso que um time comigo era um time com um a menos. Não me passavam a bola, não me marcavam. Jeanzinho vinha correndo, só tinha eu. Na televisão, o Artilheiro se livrara da marcação de três e seguira adiante, os narradores falavam como ele parecia entrar em um transe com a bola.

As meninas todas olhavam, os rapazes de fora palpitavam qual seria a firula da vez. De fato, Jeanzinho veio diminuindo o passo. Subestimou. Olhou sua plateia, sorriu de lado, passou um pé por cima da bola. Devagar demais. “Eu não sei o que me deu, painho. Meti o pé!” Na TV, o Artilheiro não titubeou, metade dos adversários estavam adiantados demais do outro lado do campo, já ultrapassados, os que sobraram para defende-lo pareciam lentos demais para os seus movimentos. Quando desarmei Jeanzinho, eu corri para frente e cada toque meu adiantava a bola o dobro da minha corrida. Houve uma paralisia coletiva.

Enfim, os oponentes vieram em cima de mim. Na TV, o Artilheiro só tinha à sua frente o goleiro e foi na direção deste que avançou, gingou, driblou, era ele e o gol. No meu campo, me fechavam, senti meu coração na boca. “Era menino de todo lado, painho, tava todo mundo olhando. Não pensei. Chutei, caí e me estrupiei todo… mas foi gol.” O Artilheiro também goleou, os narradores celebraram com um longo e alto gol. Não foi como o silêncio da quadra quando, todo ralado e cheio de hematomas, levantei-me e joguei as mãos ao alto, comemorando. Ninguém na arquibancada, ninguém do meu time. Jeanzinho me deu um tapinha nas costas. Disse “boa!”

Vi, de lado, os olhos marejados de mainha, a boca silenciada de angústia, os lábios selados em um sorriso de orgulho. Sorri também. Percebi que minha respiração estava tão acelerada e pesada quanto no momento do gol. Meu sorriso morreu quando encontrei os olhos do meu pai. Duvidei que sequer tivesse me ouvido.

Tema: Futebol

17 comentários em “Relato de um linha fora │ Pedro Paulo”

  1. Olá, Pé torto!

    Eu gostei bastante do seu conto. Você, além de cumprir com a missão de abordar com excelência o tema futebol, também consegue descrever a dinâmica de uma família. O leitor entende muito bem a ambientação e a reação dos personagens e, de certo modo, torce para o menininho ruim de futebol conseguir orgulhar o pai. Achei pesado o personagem não dar certo “nem nos estudos, nem o futebol”, todo mundo tem talento para alguma coisa rs. Existem alguns desvios no texto que podem ser corrigidos com uma simples revisão, mas isso não atrapalhou a minha leitura.

    Sucesso pra ti!

    Boa sorte!

  2. Anna Carolina Gomes Toledo

    Incrível como pegar um tema e colocar família no meio gera camadas que, quando bem escritas, gera um reconhecimento mesmo para quem não chega nem perto de uma bola de futebol. Sinto pela mãe, pelo pai e principalmente pelo filho. O jeito de usar discurso direto e indireto nas falas poderia causar confusão, mas está tão bem escrito que dá para entender as falas e até imaginar que, com toda essa sensação de ser uma lembrança envolta em mágoa, ele está pensando nas falas, não falando de fato. Como quando relembramos uma conversa durante o banho e imaginamos o que poderíamos ter falado.

  3. jowilton amaral da costa

    O conto narra a história de pé torto, um garoto ruim de bola, mas que quer que seu pai tenha orgulho dele de qualquer maneira. Não é só futebol. O enredo é simples, mas é bom. Há algumas ambiguidades na narrativa, o que deixa sim uma certa confusão para entender de imediato. O “nunca mais voltei” é uma delas, na hora que li, pensei que ele tivesse fugido de casa. As personagens são boas. O tema foi executado bem Conheço todas essa expressões usadas: Baba, linha fora, são bem típicas aqui da minha região. Boa sorte no desafio.

  4. Olá, Pé Torto! No início do conto, qdo vc escreve “que seu filho” vc dá a entender que o narrador é na 3a pessoa. Mas logo a seguir entendemos que é em 1a. Não entendi “suado do baba”. Qdo vc diz “eu jamais retornei” pensei que o filho tinha fugido de casa, e isso causou uma confusão na minha leitura. Depois entendi que ele continuava ali, querendo chamar atenção do pai. no final, em vez de uma suposição do filho, acho q o conto ganharia muito mais com uma ação (ou uma não-ação do pai), mostrando sua indiferença. De todo modo, foi uma maneira original de abordar o tema futebol. Faltou uma revisãozinha ortográfica.

  5. Olá, Pé torto! Tudo bem?
    Não gosto de futebol… Não consigo dormir com a tv ligada, a não ser que esteja passando futebol, aí durmo na hora… Verdade!
    Mas o seu conto vai muito além do futebol, ainda bem!
    A simplicidade com que escreveu um tema tão forte quanto a rejeição de um pai, possivelmente alcoólatra, caiu muito bem. Não abusou do drama, não escreveu pra chocar. Gostei disso. A criança mesmo que já sabendo que não era importante pro pai, ainda assim tenta impressionar.. você conseguiu capturar a essência da inocência das crianças. Um ótimo conto! Parabéns!
    Boa sorte no desafio e até mais!

  6. Fernando Dias Cyrino

    Ei, Pé Torto, cara quem te leu e curtiu o seu conto foi um tremendo pé torto na infância. Ah, como me senti vingado pelo nosso herói. Puxa, gostei muito do seu conto. Você tem as manhas para contar a história prendendo o seu leitor. Parabéns. O final foi muito legal. Nosso herói tendo a certeza de que o pai nada escutara do seu relato épico. Parabéns pelo seu conto. Muito sucesso no desafio.

  7. Olá,
    Novamente um autor corajoso que escolheu um tema bem específico. Achei que foi trabalhado muito bem, e ainda conseguiu incluir uma bela profundidade na construção dos personagens em um espaço tão curto. A escrita é profissional muito bem trabalhada. Talvez um pouco corrida mas até que combina com a narrativa
    Parabéns mesmo. Boa sorte.

  8. Olá. Uma das muitas ligações que existem entre o meu Portugal e o seu Brasil é o delírio pelo chamado “desporto rei”. Algo que para mim é inconcebível – não passam de 22 magnatas a brincar com a bola. O que está em jogo no seu conto é narrar o que está para além do jogo em si: a paixão aos mais diferentes níveis. Enquanto o pai é apaixonado pelo seu clube e completamente cego quanto ao que o rodeia, o filho quer desesperadamente chamar a atenção do pai. Para a mãe a família está em primeiro lugar. Respeita a opção do marido, ama incondicionalmente o filho e estaria disposta a apoiá-lo mesmo que este chegasse a casa e informasse a sua decisão de se tornar traficante de droga. É neste triângulo de paixões que o conto ganha vida, numa linguagem simples e assertiva, sem arriscar nem se perder em grandes descrições – algo que o limite telegráfico imposto pelo desafio impede…

  9. Ana Luísa M. Teixeira

    Oi Pé!
    Tudo bem?

    Primeiramente adorei o título e o pseudônimo!
    Seu texto atendeu muito bem ao tema. Gostei muito de ler! Um texto leve e com um fluxo de leitura muito bom, mas ao mesmo tempo se tratando de (a meu ver), a construção de um trauma de infância. Muito bem escrito e bem estruturado. A construção das personagens e a maneira como elas se comunicam estão excepcionais. Consigo muito bem visualizar uma criança contando essa situação com o mesmo ímpeto, emoção e ansiedade descritos aqui no seu texto.
    Não há nenhum problema com relação à revisão ou gramática e está muito bem escrito.

    Parabéns pelo texto e boa sorte!

  10. Buenas, Pé Torto!

    É uma escrita profissional. Bela, gostosa de ler, planejada para causar o impacto desejado. O narrador insiste em chamar o pai de “painho” e a mãe de “mainha”, mesmo sendo uma lembrança de outrora, exatamente pra cativar a simpatia do leitor. Palavras encaixadas perfeitamente para emocionar. Isso tira um pouco da naturalidade da narrativa, porém, isso não é um problema. É uma técnica válida. Porém, admito que o enredo me incomodou um pouco. Tenho um pequeno problema com textos que apelam demais para a emoção e ainda abraçam o clichê sem qualquer contraparte. O pai ausente e a mãe carinhosa. Sem qualquer quebra de expectativa. Acabo ficando um pouco frustrado. Mas isso é um conflito interno, apenas meu, só achei que vale a pena mencionar isso, pra ter a visão da pluralidade de leitores que existem. Pra finalizar, a estrutura do texto revela a experiência na arte de escrever contos. É tudo dosado na medida certa, com técnicas eficientes e afins.

    Apesar da trama clichê e do tom superficial da narrativa, é um conto que tem tudo pra fazer sucesso.

    Parabéns pelo texto! Vamos que vamos.

  11. Claudia Roberta Angst

    Oi, Pé Torto, tudo bem?
    O conto aborda o tema proposto com categoria e maestria nos dribles.
    Narrativa bem conduzida, emoção e razão bem dosadas, nada de excessos ou fallhas. Doeu perceber a indiferença do pai diante da empolgação do menino em ter feito bonito no futebol. Não entendo nada do esporte, nem assisti a jogos mesmo durante a Copa, mas aqui tudo mereceu cartão verde.
    Não percebi falhas na revisão, pois estava distraída com a bela e tocante narrativa.
    Parabéns pela participação e boa sorte!

  12. Pé torto,

    Futebol é rito. No universo machista, não raro, equivale quase à religião. Amar de futebol, se interessar em saber a escalação do time, e gostar de jogar aproxima muito o filho dos pais.
    Não ser bom de bola é decepcionante. Não gostar é crime. Afinal, do que pai e filho falarão no almoço enquanto assistem o chatíssimo “Dono da bola”, “Esporte espetacular”? Para onde irão no domingo a tarde, se não for para frente de um TV?

    Aí, o menino está faz o seu primeiro gol. Está empolgadaço para poder contar ao pai e estabelecer um vínculo com o cara. Deixar menos estranha a relação entre eles. Mas ela não veio. Puxa!

    O texto todo está muito bom, o tema está bem explorado, o limite de caracteres foi usado a favor, deixando tudo conciso, sem excesso, nos mostrando só beleza da indiferença paterna.

    Parabéns!

  13. antonio stegues batista

    Já li um conto parecido, a narração de um jogo de futebol pelo protagonista, também um dos jogadores, não lembro onde.
    No outro conto também há uma relação conturbada do jogador com a família. No fim, tudo não passava de um sonho.
    Mas apenas esses dois elementos.
    A estrutura de mesclagem de tempos pode confundir em um momento.
    É preciso atenção para identificar corretamente o que está acontecendo em cada tempo de ação.
    Um conto bem escrito, mas pra mim não trás grandes novidades, pois já li algo do gênero.

  14. Oi Pé Torto,

    Que texto emocionante! Você conseguiu transformar um tema cliché e muito batido em algo extraordinário!
    Conto muito bem escrito e que nos prende do início ao fim. Parabéns!
    Como você escreveu “painho” e “mainha”, tudo indica que seja baiano. Que orgulho!
    Sucesso com o seu conto!

  15. Regina Ruth Rincon Caires

    Nossa Senhora! Como não se apaixonar por literatura? Que primor! Parabéns!

    Caro autor, caso tenha havido deslize gramatical, falta de hífen, de pontuação, qualquer outra falha, nem enxerguei. O seu texto é maravilhoso, um encanto!

    Pobre pai que perdeu tanto bem-querer dessa família, que pena!

    A construção do conto é das mais difíceis de serem produzidas. Cabe ao narrador/personagem ambientar o texto ao mesmo tempo em que vai descrevendo as cenas, transmitindo seus sentimentos, interpretando os sentimentos da mãe, a indiferença do pai, “transmitindo” o jogo que transcorria na TV, relatando a sua proeza referente às jogadas em campo até chegar ao gol, relato carregado do orgulho que queria dividir com o pai.

    Genial a técnica usada, uma narrativa fluida, galopante, sem respiro. E, ao final, o nó na garganta e a reflexão tomam conta do leitor. Fiquei assim. Extasiada. Fechei os olhos e pensei: PQP, eu queria escrever assim!!! Que coisa mais linda!

    Amo o tema “futebol”, amo futebol, amo esportes. Adoro a fala usada no campo, nas discussões, no contar. “Baba” tem algo de Bahia, de Nordeste. “Firula”. Confesso que, quando li: “passou um pé por cima da bola”, inevitavelmente me lembrei do fatídico jogo de 2002, em que Robinho aniquilou o meu Corinthians! Bah!

    Agora, separei algumas frases que, dentro do contexto, me arrepiaram:
    “… no futebol eu era um linha fora, no colégio, um zero à esquerda.”
    “… perguntava-me opiniões, cutucava-me, ficava logo aborrecido com o meu silêncio e depois silenciava ele mesmo, de cara fechada. Quando parecia melhorar, era o mesmo que eu não estivesse ali.”
    “… uma braçada mais ou menos contida me pôs de lado…”
    “Gaguejei, olhei de lado para a minha mãe, que também tinha a boca aberta, um protesto a ser dito, lágrimas à beira dos olhos.”
    “… era consenso que um time comigo era um time com um a menos.”
    “Vi, de lado, os olhos marejados de mainha, a boca silenciada de angústia, os lábios selados em um sorriso de orgulho.”
    “Meu sorriso morreu quando encontrei os olhos do meu pai.”

    Agora, o mais dolorido:
    “Ele não percebeu, eu jamais retornei.”

    Parabéns, Pé Torto! Que lindeza de texto!

    Boa sorte no desafio!

    Abração…

  16. Oi Pé torto.

    Caramba, que texto lindo este seu!

    Primeiramente, parabéns por ter pego o tema mais chaaaaato do mundo (futebol, bléh) e ter criado uma história comovente, que deixou meu coração apertadinho.

    É o que se chama “tirar leite de pedra”.

    A construção do seu conto é impecável. A maneira como narrou paralelamente a história do gol do menino com o jogo da TV foi muito bem pensada. Seus personagens são ricos e foram desenhados sem recorrer a descrições cansativas, e sim através de suas ações.

    Amei!

    Parabéns e boa sorte!

    Kelly

  17. Um conto que trata de futebol, mas, principalmente, da relação entre pai e filho. Tem camadas.
    O texto tem um ritmo bom, me prendeu bastante. Consegui imaginar todas as cenas narradas.
    Parabéns !

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