
Sabe o que é pior que ser molestado quando se tem apenas seis anos? Não ter raiva de quem te abusa. Mais que isso: nutrir pelo seu algoz um estranho sentimento de benquerência. Sem sequer se dar conta, você está ali, se apiedando de alguém que tão mal te fez.
Não, não adianta se agarrar em lógicas e razoabilidades. É até provável que haja, na medicina psiquiátrica, algum equivalente a uma Síndrome de Estocolmo que explique essa desrazão. Ainda assim, deixe-me expor alguns pontos. Exposição nunca foi um problema para mim.
É difícil definir quando se deixa de ser uma criança, apenas sente-se: eu era uma. Em diferentes culturas há ritos de passagem. Antigamente, era comum alguém que, já não sendo considerado criança, fosse tido como adulto. Juventude é um conceito novo, mesmo na cultura ocidental – cientistas sociais apontam que tenha nascido pelos anos 50, com Elvis, James Dean e outros sonhos de consumo capitalistas. Para mim, ele era um jovem desde que me entendia por gente, e nem precisava que cientistas sociais dessem o aval para que ele existisse. Era um jovenzinho, com seus 13 anos e bigode ralo. Criança não era mais. Uma criança não faria aquilo.
Não foi um abuso. Não tecnicamente. Não houve uso de força. Foi mais ardiloso que isso: foi uma conquista. Éramos próximos, brincávamos juntos, para cima e para baixo, pés desnudos no chão de terra batida. Molecagens em geral, campainha de casas tocadas, e core, corre, corre. As pegadas a levantar poeira e deixarem rastro e evidências para trás. Algumas pegadas ficam, indeléveis.
Um pique-esconde qualquer e corremos para o mesmo esconderijo. No escuro do galpão, sua mão a roçar minha perna, e eu, criança, sem nem maldar. Disse-me, com o dedo em riste sobre a boca, que não fizesse estardalhaço, caso contrário seríamos descobertos. Sem fazer alarde, abaixou as calças curtas, para que eu fizesse o que ele bem entendesse. Shhhh! E eu obedecia, porque assim havia aprendido: aos mais velhos deve-se respeito. Mais que isso, eu tinha alguma admiração. Ele sempre ganhava as brincadeiras.
Os pique-escondes tornaram-se cada vez mais comuns. Pouco a pouco, substituíram as brincadeiras pueris de outrora, e dispensamos terceiros que justificassem nos isolarmos do mundo. Criamos nossos próprios esconderijos.
Lá para as bandas de cima, no norte, pode-se dizer que era algo comum aquele aliciamento da figura que goza de autoridade sobre os demais, nesta dinâmica infantil que muitas vezes passa desapercebida por adultos, desatentos ou não. Mesmo aqui, no sul, é mais comum do que se pensa. Do que se noticia. Acredite.
Quando, algum tempo depois, me dei conta de que o que ele havia feito comigo era uma violência, me senti humilhado. Sujo. Não, aquilo não haveria de ficar assim, que sempre fui moleque tinhoso. Preparei minha vingança friamente. Ou nem tanto: esquentei o ferro de passar de mainha e fui até ele, sedutor como ele havia me ensinado. Como se quisesse um carinho a mais, sorri, e ele de volta. Mas o que ele pensava ser abraço foi, isso sim, algo que ficou em sua pele, como tatuagem. Marcante como sua covarde aproximação à minha ingenuidade, logo roubada.
Não sei como ele hoje explica à esposa e aos filhos a marca que carrega nas costas. Nem como justifica a raiva que tem de boiolas, como costuma dizer. Em mim, ficou uma marca invisível. Já adulto, me ocorria algo estranho: me interessava – até me apaixonava – por mulheres. Mas carnalmente, era pelos homens minha atração. Questão de química. Tudo é química. De alguma forma, aquele homem, aquele rapaz, marcou minha vida. Minha subjetividade.
Difícil dizer se aquilo foi determinante para que me tornasse gay ou se essa era uma condição que nasceu comigo. Naquela época ainda nem pensava nisso. Não tinha idade. Por mais que isso nos acompanhe desde a mais tenra idade, ainda não era hora de aquilo acontecer, não daquele jeito.
Hoje, quando olho para o passado, tudo o que mais queria era não sentir compaixão por aquele jovem; por aquele que sempre será, em minha memória, jovem e sedutor. Minha dor é perceber que há coisas que, por mais que se tente, simplesmente não podem ser apagadas. Ou escondidas.
Tema: Vingança
O texto narra a história de uma criança que foi abusada pelo seu “amigo” mais velho. O enredo é bem conduzido e a história é muito forte e incômoda. A narrativa é bem feita e os abusos são mostrados de uma forma até sutil, o que também ganha pontos, porque seria fácil pesar a mão. O tema foi bem executado. Boa sorte no desafio!
Olá, Zé!
Eita! Mais um conto que aborda esse tema tão sensível do abuso infantil. E, assim como o outro texto, esse também está muito bem escrito, a gente consegue sentir a emoção do personagem e entender as situações que o personagem passa. Você consegue abordar bem o tema, além de citar outros assuntos, como a sexualidade e as consequências da história de vida e escolhas do personagem. É uma história muito forte, bastante verossímil e admiro a coragem de escrever esse texto. Parabéns!
Sucesso pra ti!
Boa sorte!
É complicado dizer que gostou de um texto com essa temática. Tipo, “parabéns, realmente falou de um abuso com capricho… É complicado apreciar esse assunto, mas ficou, de fato, bem feito. Chocante justamente porque tem q ser chocante. Foge de um moralismo pedagógico e beira um caminho problemático de justificar o abuso pela admiração, mas felizmente consegue usar da ficção para destrinchar a situação sem de fato causa problemas reais. Aqui, na ficção, esse tipo de apontamento serve de alerta para o que na vida real exige mais que 700 palavras. Sigo horrorizada, mas satisfeita com o que li.
Texto inquietante, que investe sua força na voz traumatizada de seu narrador, expondo suas dúvidas e reflexões de maneira a enriquece-lo perante quem lê. Aborda o tema, mas não o toma por central, sendo mais algo que aparece na narrativa, ao invés de embasá-la. Li alguns comentários para pacificar a minha e mente e lembrar que, sim, há de se considerar a voz narrativa ao tomar os devaneios sobre sexualidade e, sobretudo, a insinuação a respeito da normalização do abuso no norte do país, tendo em vista que moro no Nordeste. Mas isso está separado, não integra minha leitura do conto.
Olá,
O seu conto tem um impacto fortíssimo. Um dos melhores que eu li nesse desafio. Infelizmente, a gente sabe que essas situações acontecem muito na realidade. A forma como você abordou isso foi muito realista. Parabéns!
Olá, seu Zé da Esquina, cá estou eu às voltas com o seu conto. Caramba. Que história forte! Saiba que ela me impactou. Sabe, em alguns momentos fiquei em dúvida se estava diante de uma crônica, ou de um conto, mas opto, com toda certeza, pelo lado do conto. O tema está muito bem colocado, o conto abrange a vingança (e como). Narrativa muito bem escrita, não há erros. Você sabe contar muito bem sua história. Bem, gostei bastante dele. Parabéns, Zé. Sucesso aqui no nosso desafio.
Olá, Zé da esquina! Tudo bem?
Seu conto parece uma crônica, um relato real acontecido com o autor. Isso é muito difícil de conseguir caso não seja real, e se for real é difícil igualmente expor de uma forma literária consistente. Então, só por isso, seu conto já tem muita qualidade. Você conseguiu narrar uma história de abuso sem apelar. Conseguiu levantar corajosamente questões que devem sim ser respondidas sem qualquer tipo de doutrinação. É um conto corajoso. Parabéns!
Boa sorte no desafio e até mais!
Olá. Este conto relata um abuso sexual e as suas consequências. Normalmente associamos estes atos entre adultos e crianças, mas o seu conto descreve algo mais perverso: o abuso de uma criança por parte de outra criança mais velha. Só não creio que isso tenha influenciado a orientação sexual. Ou melhor: nestes casos nunca saberemos. Apenas podemos fazer a nossa parte para que não aconteçam. Em termos da estrutura e da linguagem, gostei da forma como tudo se foi desenrolando, sem revelar toda a verdade. Sem pressas. O desenvolvimento mostra o conflito interno de forma detalhada e crua.
Buenas, Zé!
Conto bem escrito, gostoso de ler, com frases impactantes. Obra de uma mente que trabalha além da inspiração. Gosto disso. Mas duas coisas me incomodaram. Primeiro: o conto não é sobre a vingança, é sobre o roubo da inocência. Por causa disso, o ato de vingança parece solto, como se pudesse ser descartado sem prejudicar o restante do conto. Não é um elemento forte na narrativa. Segundo: a forma como um menino de seis, sete ou oito anos consegue abstrair a noção do abuso e ainda arquitetar um plano de vingança eficiente (marcar a pele do abusador). Não parece coerente com a imagem construída anteriormente, também.
Gostei bastante da ousadia em levantar algumas reflexões que incomodam. Assuntos polêmicos podem baixar sua nota, sem falar que alguns leitores não conseguem separar o autor da obra. Então, é um ato de coragem.
Parabéns pelo texto. Vamos que vamos!
Oi Zé!
Tudo bem?
Gostei muito do texto. Tenho que admitir que terminei boquiaberta. Um conto muito bem narrado, um enredo absolutamente verossímil e tudo isso permeado de uma violência quase muda, como muitas vezes é mesmo na realidade. O fato da narrativa ser em primeira pessoa enriqueceu muito o texto.
Não encontrei grandes erros de digitação ou de revisão.
O tema foi bem abordado e o texto flui muito bem.
Parabéns pelo texto e boa sorte!
Oi, Zé da esquina, tudo bem?
O conto aborda o tema sugerido, embora não seja essa a questão principal da narrativa.
Não encontrei erros de revisão, ou não existem ou me fugiram.
Não vou discutir a ideia do narrador sobre a sua sexualidade porque justamente é isso: uma ideia de narrador, e há tantas concepções erradas, vindas de tantos narradores, circulando por aí…
O tom dramático predomina no texto, talvez por causa da narrativa em primeira pessoa, talvez porque um relato desses não tem como escapar de uma carga dramática.
O final me fez lembrar da música de Belchior:
“Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos”
E aí, será que você o mocinho sedutor e molestador continuam os mesmos?
Parabéns pela participação e boa sorte no desafio.
Oi Zé da Esquina.
Gostei do seu conto. É uma narrativa forte, que conta uma história também forte.
Mas o que mais gostei mesmo é que ele não é um texto “limpinho”, que usa todos os termos corretos e aceitos. Do contrário, é um texto que enfia o dedo na ferida, que faz perguntas doloridas, que tira conclusões estranhas, que causa incômodo, um texto que não se preocupa em incomodar ou não. Como disse, corajoso. Eu, em seu lugar, teria preguiça. Que bom que você não teve.
É importantíssimo perceber que a narrativa é em primeira pessoa. Então, trata-se de um homem falando sobre sua dor, seus demônios, suas dúvidas, seus pensamentos em relação a uma violência horrível que ele sofreu. Por este motivo, acho que cabe sim, que este narrador denote através de suas palavras e pensamentos, ideias que não sejam as mais precisas, científicas e politicamente corretas. Ele não está fazendo um estudo sociológico. Ele está falando de seu inferno pessoal.
Parabéns pela coragem e boa sorte.
Kelly
Zé da esquina, tudo bem?
Você apresentou um relato triste de uma criança abusada por um adolescente ou pré-adolescente dependendo do que se considera.
Muito chocante o seu relato.
Há algumas coisas no seu conto que me incomodaram. Vou a elas:
1- “Mesmo aqui, no sul, é mais comum do que se pensa” – por qual motivo no sul seria menos comum? Me pareceu problemática, como se fosse esperado essa comportamento das pessoas do norte, por isso, não seria tão chocante quanto ocorrer com as pessoas do sul.
2- “Nem como justifica a raiva que tem de boiolas” – é preciso ter muito cuidado ao associar a homofobia a uma homossexualidade no armário. Lidar com a própria homossexualidade é um processo complexo de aceitação, que pode nunca chegar, e que não está ligado a ser ou não assumido. Ter transado – no caso abusado – com alguém do mesmo sexo em nenhuma idade é determinante para definir a orientação de uma pessoa. Ainda mais aos 13 anos.
3- “Difícil dizer se aquilo foi determinante para que me tornasse gay ou se essa era uma condição que nasceu comigo”. É bastante frequente a associação da homossexualidade a algum abuso. Até entendo que a personagem possa ter assimilado esses discursos, mas no mesmo parágrafo, o narrador diz: “Por mais que isso nos acompanhe desde a mais tenra idade”. Então o narrador sabe que o abuso não determinou a orientação sexual dele. Não há motivo para ele supor que isso poderia ter relação com o abuso.
Tirando esses pontos, o conto é bom. A questao de não conseguir odiar o abusador é complexa e bastante real. Eu li isso em um livro da Ligya Bojunga “o Abraço”. E sobre isso, você conseguiu apresentar a dificuldade de guardar esse sentimento.
O tema vingança está justificado, na perspectiva de uma criança, a dor da queimadura pode parecer equivalente a dor do abuso.
A escrita mistura algumas perspectivas da psicologia e da sociologia em meio a narrativa. Funcionou. É um conto que deu vontade de seguir lendo e as reflexões complementam a leitura e não a travam.
Boa sorte no desafio.
Oi Zé da Esquina,
O texto é impactante e trata de um assunto muito pesado! A gente vai lendo a história e se enojando com o abusador que se aproveitou da inocência de uma criança.
A infância e a pureza destas crianças que são abusadas por pessoas muito próximas a elas, são roubadas de forma muito cruel.
O conto está bem escrito e prende a atenção do início ao fim. A leitura flui como bem disse Mauro Dillmann. Parabéns.
Sucesso com o seu conto!
O texto me parece ser mais uma crônica com a opinião do autor sobre o assunto, do que conto.
Descreve, como exemplo, o que ocorre no crime de importunação sexual
e discute com o leitor sobre seu ponto de vista: “Não, não adianta se agarrar em lógicas e razoabilidades.
É até provável que haja, na medicina psiquiátrica, algum equivalente a uma Síndrome de Estocolmo que explique essa desrazão.
Ainda assim, deixe-me expor alguns pontos. Exposição nunca foi um problema para mim.”
Dentro do tema “vingança”, o autor elaborou um gênero textual que leva o leitor a conhecer um forte depoimento. Escrita ficcional, mas que soa como uma declaração pessoal. No Direito, o texto remete à fala de uma vítima detalhando o “modus operandi” do abusador. Confesso que cheguei a imaginar esta cena.
Mas o relato que acabei de ler, ainda traz natureza subjetiva. O autor conta, através de sua perspectiva, e o leitor assimila aquilo que lê, de acordo com o seu conhecimento, com a sua vivência. Concordando ou discordando. Apesar de toda discussão que há sobre homossexualidade, cada um tem a sua teoria. Eu, particularmente, acho que tanto o homossexual, o heterossexual, o bissexual, todos nascem como são. Mas quem sou eu para lacrar essa discussão, não é?.
Interessante a argumentação que o autor coloca quando fala sobre ser criança ou deixar de ser. Quando faz referência a James Dean e Elvis, a discussão fica muito próxima a mim. Vivenciei tudo isso, e, lendo, voltei no tempo. As décadas de 50 e 60 ainda foram povoadas por decisões simplistas vindas dos adultos, a partir da vida familiar. Eu entendia como “criança” o menino que usava calças curtas, e entendia como “moço” o menino que usava calças compridas. E as meninas?! Coitadas. Na vestimenta não havia diferença alguma. Sempre responsáveis, comportadas, tolhidas. Não existiam, nas conversas, as palavras: infância, puberdade, adolescência, juventude. O aparecimento do filme “Juventude Transviada” foi uma revolução dos costumes, a crítica corrente era de que “os moços se desviaram do caminho certo”. Ainda bem que o mundo seguiu e segue em processo de evolução constante.
E também achei muito interessante a explanação sobre a visão do abuso e o reconhecimento deste abuso. Sobre aquele que é praticado com o uso da força, e sobre o abuso ardiloso, conquistado. Ambos deploráveis, inconcebíveis.
A escrita proporciona uma leitura fluida, clara. Mas, confesso, encontrei frases que tiram o sossego, que provocam mal-estar, que atiçam o nojo.
A vingança concretizada com a queimadura nas costas fica como contraponto da marca que ficou na alma do abusado. Mas não basta.
Ao final da leitura, resta o silêncio. Reflexão.
Parabéns, Zé da Esquina!
Boa sorte no desafio!
Abração…
Quero fazer outra observação.
Sei que é texto ficcional, literário, imaginativo, livre, enfim, sem qualquer compromisso teórico, filosófico, político com o ‘real’, etc.
Todavia, pelo caráter ‘realista’ da trama, uma frase me incomodou:
‘Difícil dizer se aquilo foi determinante para que me tornasse gay ou se essa era uma condição que nasceu comigo’.
Me incomodou pela ideia do ‘tornar-se gay’, já tão debatido pelos movimentos sociais, academia, público,…
Não vou registrar opiniões chatas, só quero registrar meu ‘incômodo’ enquanto leitor. 😉
Um texto bem escrito. Tem até alguma relação com o anterior, o tema da violência de um abuso.
A leitura fluiu e tem elementos que conseguem prender o leitor.
Trata-se de um rememorar o passado da infância e de uma sequência temporalmente linear até o retorno ao presente do narrador.
Por esse caráter memorialístico e linear, penso que faltou algum elemento no desfecho.
No lugar do desfecho, o texto retoma o que foi narrado no início (ficou muito bem escrito, não é essa a questão), e, assim, me passou a impressão de que faltou algo.
Valeu muito a leitura.