O Reino imundo de Zumbizar │ Jowilton Amaral

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Descobri naturalmente que a vida era árdua, breve e fétida, poucos dias após a eclosão, embora já adulta, quando me percebi bem acomodada numa montanha de dejetos, regurgitando e me alimentando de toda aquela podridão. Existiam milhares de outras como eu. Vivíamos livres, estávamos em tempos de paz e éramos senhoras supremas do reino imundo de Zumbizar.

Até o dia em que chegaram os gigantes, oriundos sabe-se lá de onde. Primeiro em pares, depois em pequenos grupos, e, finalmente, feito enxames, infestando nosso lar. Vinham a pé ou dentro de sucatas barulhentas e esfumaçadas. Construíram tendas com madeira, plástico e lixo e competiram pelo território. Com harmonia violada a beligerância fora inevitável.

A guerra foi iniciada ferozmente. Atacávamos por todos os flancos. De todas as formas e muito bem organizadas. Ferroávamos seus corpos, pousávamos em suas sopas e perturbávamos os seus sonos. Eles eram enormes e mais fortes, porém, lentos e em minoria. Nossa visão era mais bem aperfeiçoada que as deles. Enxergávamos em trezentos e sessenta graus, através de cordas perpendiculares ao trajeto da luz e captávamos duzentos e cinquenta frames por segundo. O tempo passava em câmera lenta para nós, facilitando nossas defesas e o contra-ataque. Eles tentavam nos atingir com as patas superiores enquanto se locomoviam com as inferiores. Eram animais rústicos, se movimentavam pelo chão, de forma bípede. Comunicavam-se com sons ininteligíveis, rudimentares, de baixa frequência e não eram disciplinados. Agiam de impulso. Sem nenhuma estratégia bélica. O massacre foi irremediável.

Em pouco tempo o contingente deles foi diminuindo. Muitos abandonaram o campo de batalha. Outros tantos sucumbiram. Nossas larvas introduzidas em seus organismos, enfraqueceram os que ainda resistiam. Começamos a nos aquecer com seus corpos e seus suores e nos alimentávamos dos dejetos e dos humores dos cadáveres que apodreciam sob o sol escaldante. O odor pestilento que emanava das titânicas carcaças era nosso júbilo.

De quando em quando outros gigantes surgiam e tentavam oprimir nosso império. Todavia, eram prontamente atacados, expulsos ou devorados. Nosso esquadrão implacável estava invencível a eras. Éramos as destemidas Califorídeas de Cabeça Azul, guerreiras milenares desse mundo de devassidão.

Como general do exército, benevolentemente, darei um conselho a todos vocês, gigantes ou não, que se atreverem a invadir nossos domínios: “não adianta vir me dedetizar, por nem DDT pode assim me exterminar, porque você mata uma e vem outra em meu lugar.”. 

Tema: Moscas

17 comentários em “O Reino imundo de Zumbizar │ Jowilton Amaral”

  1. Anna Carolina Gomes Toledo

    Adorei a ideia da história! A narrativa meio épica, meio fantástica, mas no fim das contas se tratava de uma escolha bastante engenhosa de falar de moscas. Criativo, não há palavra melhor para descrever o conto.
    A princípio me perguntei se ele funcionaria sem o tema e então conclui que bastava o tema ser informado e provavelmente permaneceria tão interessante quanto. No fim das contas, uma boa escrita sempre entretém .

  2. Enfurecedor e perfeitamente adequado, inserindo quem lê na perspectiva das próprias pestes, aqui racionais ao ponto de desdenhar de seus oponentes gigantescos, além de aplicar essa premissa em um conto bem estruturado, com início, meio e fim. Faltou, entretanto, um clímax, foi um texto que se sucedeu rapidamente sem tensão, mais chocante pela boa escrita e escolha narrativa de situar a perspectiva nas moscas.

  3. Olá,
    O conto atende ao tema. Gostei das referências à música do Raul. Acho que funcionou bem. É um conto que choca pela nojeira, mas acho que poderia aproveitar melhor isso. Ter um impacto ainda maior.
    Boa sorte!

  4. ei, Rauzito. Bem, pelo menos ninguém haverá de reclamar que não se tocou Raul. Pois é, apresentou o tema pestilento das moscas mostrando o quanto elas são invencíveis. Fez isto a contento. E como dizia o nosso herói, nem adianta vir me dedetizar… outra virá em meu lugar… Gostei. sucesso no desafio.

  5. CLAUDIA ROBERTA ANGST

    Oi, Raulzito, tudo bem?
    Zumbizar e Raulzito já entregam a natureza da protagonista. Zumbizar pelo som, Raulzito pela lembrança da música ““Mosca na Sopa” do Raul Seixas. O conto abordou, desde o título, o tema proposto.
    Narrativa bem construída com ação e descrições detalhadas – eca!
    Só percebi uma falha em meio a essa batalha pestilenta:
    […] invencível a eras > […] invencível há eras
    Demorei um pouco para perceber que os gigantes eram pessoas.
    Parabéns pela participação e boa sorte!

  6. Buenas, Raulzito!

    Já tive a infelicidade de cruzar com um enxame de moscas-varejeiras. Dá pra ouvir o zumbido das moscas antes mesmo de avistá-las. É um negócio sinistro, assustador mesmo. Por causa disso, a visão do reino de Zumbizar ficou ainda mais forte na minha cabeça. Que lugar aterrorizante, hein.

    Gostei muito de tudo, com exceção de uma coisa: a narrativa não parece ser feita por uma mosca, mas sim uma pessoa que finge ser uma mosca. Explico: o narrador se justifica demais, comparando sua biologia com a dos humanos e chamando o ambiente, que é natural para eles, de imundo. Acredito que a imersão ficaria mais interessante se fizesse um jogo de palavras. Para eles, os montes de merdas poderiam ser os nossos montes floridos. Até porque a percepção do ambiente depende de quem o observa. Um psicopata encontra prazer no esquartejamento, enquanto um empata encontra o verdadeiro terror no mesmo ato. Mas isso é uma cisma, minha. Gosto muito deste tipo de imersão, então pensei em dar essa sugestão.

    Parabéns pelo texto. E vamos que vamos!

  7. jowilton amaral da costa

    O conto narra uma batalha pelo território de um lixão entre moscas varejeiras e humanos, que aqui são chamados de gigantes. A trama é boa e bem estruturada, As descrições são muito bem feitas, formando ótimas imagens. A escrita é boa, segura e faz soar um tom fodão da mosca general. O tema foi muito bem explorado. O impacto foi acima da média. Boa sorte no desafio.

  8. Olá. Este foi um texto nojento… dá quase vontade de mandar à mrda, mas aí as varejeiras iam voltar. Escolheu bem, de entre as moscas, a mais repugnante de todas. Isso leva-me a uma questão: os outros dois temas seriam assim tão pouco interessantes? A mim, pessoalmente, acho a ideia de escrever sobre moscas um exercício repugnante, cujo resultado sairia a ferros mas que dificilmente chegaria aos calcanhares do seu (nojento) texto.

  9. Regina Ruth Rincon Caires

    Este reino é muito rico nas entrelinhas. As “moscas” sugerem inúmeros personagens, os gigantes trazem tantos significados. O leitor pode viajar neste texto.

    Raulzito foi um gênio no “trabalhar” nas entrelinhas. No tempo da ditadura militar, este foi um recurso recorrente para não silenciar, para não desistir. Sentimento camuflado, mas latente. Não sei se essa foi a intenção do autor quando produziu este conto, mas eu li muito mais do que parágrafos. Assimilei a opressão feita pelo poder sobre a minoria; a invasão dos espaços, dos mais fracos, feita por poderosos; a luta pela sobrevivência. E o meu entendimento caminhou conforme o meu desejo de compreender, o que não quer dizer que outras muitas pessoas não tenham entendido o conto como uma batalha de moscas diante de gigantes, como o duelo de um enxame para preservar o seu território, para defender o seu alimento. Tudo faz sentido.

    À imaginação do leitor pertence toda a liberdade do mundo. Não há qualquer limite.

    Texto bem escrito, bem construído.

    Parabéns, Raulzito!

    Boa sorte no desafio!

    Abração…

  10. Oi Raulzito.

    Um interessante conto narrado por uma mosca. Provavelmente, aquela, que pousou na sua sopa. Bem escrito, bem humorado. Só fiquei curiosa em saber como as moscas sobreviveram aos ataques de inseticida.

    Você conseguiu atender ao tema muito bem e entregou um texto muito bom!

    Parabéns e boa sorte.
    Kelly

  11. Ana Luísa M. Teixeira

    Oi Raulzito!
    Tudo bem?

    Adorei! Muito bom mesmo! Bem escrito, dentro do tema e super bem estruturado! Com um humor impecável.
    Sério, estou muito impressionada por que eu não saberia nem por onde começar com esse tema! O enredo é extremamente bem construído e plausível. Ler o conto sob a perspectiva da própria mosca é uma experiência única e ao mesmo tempo incômoda.

    Encontrei o que acredito ser um erro de concordância. No seguinte trecho:

    “Nossa visão era mais bem aperfeiçoada que as deles” – acredito que o correto seja “nossa visão era bem mais aperfeiçoada que a deles”.

    De resto gostei muito mesmo do texto. Parabéns e boa sorte!

  12. ANTONIO STEGUES BATISTA

    O narrador é uma mosca que conta a batalha dela e suas companheiras, contra gigantes que, suponho,
    serem os catadores de recicláveis, caminhões e máquinas.
    A mosca tabanus bromius é que tem ferrão e há outras espécies como a mutuca.
    O enredo cumpre o tema, está bem escrito, ambientação interessante e um tanto nojento.
    Creio que o título se refere ao zumbido das moscas e não aos zumbis, nem o pais é Zumbilândia.

  13. Raulzito, tudo bem?

    Gosto de tema assim. Que obriga o escritor a sair da zona de conforto. A galera nesse desafio pegou muito leve. Suspeito até que você tenha sido quem sugeriu o tema.

    Uma curiosidade que seu conto me fez lembrar da minha infância. Cresci em um chácara e lá havia mas espécies de mosca. Pesquisando sobre a tal Califorídeas de Cabeça Azul do conto, descobri que as espécies que capturávamos em potes de vidro quando criança eram diferentes, eram Ornidia obesa. Que bom, pois tinham um brilho lindíssimo e eu não as achava nojentas, como acho as varejeiras.

    Sobre o conto mesmo. Há uma denúncia social. Duas espécies precisando disputar espaço. A mais fraca, nós, acabamos virando alimento para a outra. É realmente uma guerra, um conflito que não podemos vencer, pois precisamos desses bichos “nojentos’. É um conto muito divertido e reflexivo. Uma história que deve ser lembrada em outros desafios.

    Um ponto que me incomodou é que houve a opção por narrar na perspectiva da mosca. Todavia, algumas percepções da mosca me pareceram humanas demais. Exemplo:
    “odor pestilento” – o cheiro dos cadáveres não deveria remeter a peste para as moscas, mas ao deleite.
    “a vida era árdua, breve e fétida” – para a mosca que se alimenta da podridão, a vida em meio a podridão deveria ter um delicioso cheiro de fartura, afinal era um banquete para elas.
    O conselho no final para introduzir a música do Raul deve passar em branco pra algumas pessoas. Deixei aqui para que as pessoas irem lá ouvir.

  14. Conto bem escrito. Cuidado com o uso excessivo de advérbios: naturalmente, finalmente, ferozmente, prontamente, benevolentemente. Nesse sentido, sugiro limpar o texto.
    O texto tem ritmo, fluidez, tem ápice, tem fechamento bacana.
    Aprecio quando o título (palavra ou expressão) aparece no texto.
    Parabéns!

  15. Olá, Raulzito!

    Tenho visto temas muito criativos nesse desafio e esse certamente é um deles. Seu conto está bem escrito, com descrições que conseguem passar uma imagem clara para o leitor sobre a vida da mosca desde a eclosão até a morte. A questão é que eu achei que você foi muito literal, se fixando demais ao tema e não conseguindo desenvolver uma história com mais elementos, além da vida da mosca. Não estou dizendo que o texto está ruim, mas fiquei com a sensação que o tema poderia ter sido melhor aproveitado e escrito com mais criatividade.

    Sucesso pra ti!

    Boa sorte!

  16. Olá, Raulzito!
    Tudo bem?
    Esse tema é interessante, mas nojento 🤢🤮
    Posso estar enganada, mas acho que o domínio das moscas é um lixão e os humanos que apareceram para tentar tomar o território delas são os que tem que submeter a sobreviver em um local tão terrível… Por isso tantas baixas…
    Ficou legal toda a parte nojenta… E gostei do intelecto da mosquinha, achei bem prepotente.
    Um conto divertido!
    Boa sorte no desafio e até mais!

  17. Olá, Raulzito! Não sei se “irremediável” é a melhor palavra. Talvez “inevitável”, mas que já havia sido usada no fim do parágrafo anterior. Evitaria “benevolentemente” pq soa uma repetição sonora (ente/ente) e a vírgula dps. De todo modo, me perguntei sobre esse massacre e o “Em pouco tempo o contingente deles foi diminuindo”, já que os humanos não diminuíram, e menos ainda por conta das moscas (não me pareceu ter sido uma ficção de um massacre de moscas sobre humanos pq no final há uma espécie de conselho da general aos humanos). Mas achei divertido.

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