
Quando entrei naquela lojinha de esquina, um tanto poeirenta e solitária, lembrei-me do verão que passei ali. O mormaço carioca, aquele cheirinho de coisa antiga, a bagunça que é típica dos gênios.
Sim… Aquele lugar não tinha mudado.
O antiquário era simples: literalmente um corredor com relíquias empilhadas no lado direito e esquerdo sobre móveis antiquíssimos e estantes reforçadas, seguido dum balcão que costumava esconder todos os segredos daquele homem. Para finalizar, terminava numa portinha que levava ao cômodo dos fundos, uma mistura de oficina de restauração com cozinha e banheiro, tudo improvisado.
Uma segunda casa.
Não tive a oportunidade de conhecer meu avô. Não de verdade. Nosso único contato real foi naquele verão. Treze anos, hormônios à flor da pele, não queria sair de São Paulo. O que queria mesmo era fazer parte da colônia de férias da escola. Dormir no ginásio, tentar beijar uma garota, escapar de noite para aprontar. Imagina um pré-adolescente entrando numa loja desse naipe, irritado e magoado com a mãe, que precisava viajar para o exterior, e se deparar com um velho ranzinza e averso à tecnologia.
Apoiei os cotovelos no balcão e não contive o sorriso.
Foi uma tragédia, sim. Ele escondeu meu celular, desconectou-me do mundo. Passei os dias trabalhando na loja. Tentei reclamar no início, mas os tapas conquistaram meu silêncio. Eram tantas pessoas entrando e saindo, sem comprar nada, figuras que deixaram uma marca em mim. Pela simplicidade, pela excentricidade.
Nunca falamos da minha mãe. A relação deles era muito conturbada. Sempre foi, acho. Hoje, felizmente, entendo os motivos de cada um. Ela, alma livre e aventureira, queria conhecer o mundo e desfrutar do melhor dele. E ele, com muita sinceridade, estava satisfeito em viver daquela forma, meio recluso, mas fiel aos seus princípios.
A oficina tinha mudado um pouco.
Passei horas ajudando meu avô a organizar as quinquilharias que ficavam empilhadas num canto, aprendendo a restaurá-los. Era divertido. Sentei-me na antiga poltrona da minha avó. Estava no lugar de sempre: de frente para a mesa de restauração. Não a conheci. Minha mãe não a respeitava, mas tinha uma estranha admiração por ela. Meio contraditório, não é? Nunca entendi essa relação muito bem. Era uma mulher submissa, porém, que cativava muito amor. Sei, também, que costumava sentar nessa poltrona e observar atentamente o trabalho do marido. Num raro momento de sinceridade, ele disse, com tanto carinho na voz, que não existia realização maior do que estar no lugar que nascera para estar e com a pessoa que deveria estar. Nunca o imaginei como um romântico, mas ele pode ter sido muitas coisas além do que criei dele.
Eu precisava vistoriar o ambiente, avaliar tudo, pois essa parte da herança iria ser dividida entre meus irmãos. Decidimos vender. Minha mãe ficou com a casa. Seria vendida também. Mas preciso admitir: quando afundei naquela poltrona e fiquei horas contemplando aquele cenário saudoso, até adormecer e acordar numa penumbra um tanto familiar, certa agonia me abateu.
Senti falta dele. E senti falta do que poderia ter sido nosso relacionamento.
É tão triste perceber que o sonho de uma pessoa, fortificada por anos e anos de trabalho, pode ser desmantelado num instante. Senti-me tão impotente naquele momento, tão tolo… Mas não tinha força, sequer dinheiro, para confrontar meus irmãos.
Era quase madrugada quando saí da lojinha. Sua fachada, tão simples quanto seu interior, tinha um efeito nostálgico em mim. Céu limpo, lua cheia, rua levemente deserta: tudo parecido com a noite que voltei para São Paulo.
Minha mãe não saiu do carro, permaneceu ereta e com as mãos no volante, meneando brevemente a cabeça quando o viu, num cumprimento formal e obrigatório. Joguei minha bolsa no porta-malas e preparei-me para abrir a porta do carona quando ele pousou a mão, gentilmente, no meu ombro. Não falou nada. E abraçou-me com um tipo de ternura que nunca mais tive a oportunidade de experimentar.
Apenas naquele dia, observando o antiquário completamente apagado, sem luz, entendi o que queria dizer com aquele gesto. Algo que, em palavras, seria muito difícil para ele falar.
— Eu também te amo — respondi depois de tantos anos.
Tema: Saudades
Olá, Vetus!
Eu gostei muito de seu conto. A ambientação é clara desde o primeiro parágrafo, cria uma ambiente nostálgico e consegue transmitir bastante emoção ao leitor. Você conseguiu trazer esse sentimento familiar e abordou muito bem o tema sobre saudade. É um daqueles contos que precisamos ler mais vezes e que nos prende desde os primeiros parágrafos. É um texto lindo, muito bem escrito, leitura fluída e sem desvios gramaticais que pudessem comprometer a minha experiência. Adorei a história, a profundidade dos personagens e tudo se encaixa com muita perfeição.
Sucesso pra ti!
Boa sorte!
Conto excelente e arrebatador. O protagonista observa o lugar em que está e por seus olhos ficamos sabendo, por descrições simples e precisas, do lugar em que estamos, mas pelas vias de suas memórias é que ficamos conhecendo a profundidade dos sentimentos que o lugar desperta nele, momento em que os outros personagens nos são apresentados, com papéis e participações discretas, mas sutilmente, com personalidades bem definidas. Ótimo trabalho!
Nós desafios do Lume há sempre dois ou 3 contos que tratam de temas de relacionamentos familiares que causam essa sensação reflexiva que me dá vontade de ligar para minha psicóloga. Talvez descrever a saudade a partir da falta de um acontecimento seja realmente a melhor forma de transcrevê-la, afinal, por mais que sinta falta de algo que aconteceu, a melancolia que alimenta a saudade tem a ver com não ter feito mais, não ter dirado mais… Só se sente saudade daquilo que falta.
Talvez eu funcione melhor com dramas, simplesmente não consigo pensar em negativo com o conto, está maravilhoso exatamente assim.
Olá, Vetus! Sentir falta do que poderia ter sido é uma sensação estranhamente comum, e que seu conto captou bem isso. O final pode soar um pouco piegas, mas o sentimentalismo se justifica, nesse caso. De todo modo, gostei do seu conto.
O texto narra as reminiscências de um homem ao rever a loja de antiquários de seu avó falecido. O enredo é bem construído entre passagens do passado e do presente. A narrativa é boa. As personagens foram bem construídas, peguei simpatia peço velhinho ranzinza. O tema foi bem executado. Boa sorte no desafio.
Olá, Vetus! Tudo bem?
Que tema legal, queria ter recebido esse! O conto está muito bem escrito e o tema brilhou! O passado e o presente se entrelaçaram perfeitamente. As idas e vindas bem marcadas. O clima todo de nostalgia foi muito bem inserido. Eu sei bem o que é desmantelar o sonho de alguém depois que ele se vai… É sempre triste. Mas não há o que fazer. Temos que seguir com a vida e esvaziar os espaços para que façam sentido para nós agora.
Gostei muito! Parabéns!
Boa sorte no desafio e até mais!
oi, Vestus, um conto gostoso de ler você me apresenta. um conto de saudades. Na minha opinião, cumpriu muito bem o tema. Gosto da forma com que conduz a história. Somente dois probleminhas que reparei Um averso que acho que nesse caso você gostaria de ter dito avesso e a restauração das quinquilharias. Sim, você tem um bom domínio do idioma, sabe jogar com as palavras. Mas senti um pouco de dificuldade no final quando você faz uma passagem do tempo. Para a herança estar sendo partilhada o velho já deveria ter morrido, né? Mas aqui ele aparece reforçando a saudade. Achei muito legal isto acontecer, mas cá com os meus botões (para usar um clichê), fiquei pensando que poderia haver umas 4 ou 5 palavras para me explicar… Bem, é isto, Vestus, muito sucesso. Um belo de um conto.
Olá. A adequação ao tema está perfeito no seu conto. Nem precisava da indicação do mesmo no final do texto. A saudade é o sentimento mais familiar dos portugueses. Creio que a alegria é o sentimento mais familiar dos brasileiros, pelo menos dos muitos que conheço. O texto exprime exatamente isso, saudades de um lugar, e das pessoas ligadas a esses lugares, ou vice-versa. A linguagem é simples e adequada. As descrições são incisivas e abrilhantam o texto sem o tornar pesado. O tamanho imposto pelo desafio não permite um desenvolvimento maior – nem creio que esse mesmo desenvolvimento acrescentasse nada de diferente. Só senti falta de algo mais impactante no final.
Oi Vetus!
Tudo bem?
Gostei muito do texto! Que delicado! Muito bem construído, dentro do tema e bem escrito. Mas o que me tocou mesmo foi naturalmente o enredo. Gosto muito de textos que são sobre temas emocionantes, mas sem ser “melados”, você entende o que eu quero dizer? Acho que você conseguiu com maestria tratar do assunto da melhor maneira possível.
Tenho apenas uma sugestão de mudança:
“e se deparar com um velho ranzinza e averso à tecnologia.” – não tenho certeza de que esteja incorreto, mas seria muito melhor a construção “um velho ranzinza e avesso à tecnologia”.
Parabéns pelo texto e boa sorte!
Buenas, Vetus.
O conto é bem escrito e tem o tom dramático ideal: um pouco piegas, mas nem tanto.
A saudade daquilo que não vivemos é revisitado na literatura inúmeras vezes. Pois, de fato, é uma sensação que todos sentem. Saudades de uma vida que ficou apenas no campo das ideias. Uma idealização. Quem nunca flertou com um futuro alternativo?
No final, temos uma transição de tempo muito sutil, diferente das outras transições no decorrer do conto, e fiquei na sincera dúvida se valeria a pena facilitar para o leitor. Explico: encaminhar tudo bonitinho para o leitor, facilitando o trabalho dele, pode acabar empobrecendo a qualidade final do texto. Não sei se, neste caso, enriquece ou empobrece. Honestamente, não sei. Mas vale a reflexão.
Parabéns pelo texto e participação! Vamos que vamos.
Olá,
Um conto muito bonito e muito bem escrito. Difícil achar até algum erro para apontar. Atende bem ao tema, tem uma escrita com um bom ritmo, que transmite bem a história e descreve bem o cenário. O impacto é bastante sentimental e é bem transmitido. Acho que o único problema é uma certa falta de clareza no penúltimo parágrafo onde ha um flashback. Fica parecendo um acontecimento sobrenatural, rs.
Boa sorte!
Oi, Vetus,
É um conto bem bonito, bem trabalhado, sintético, relatando a experiência de (clichezão) sentir saudades do que não viveu.
Fiquei pensando no que há por detrás desse avô e dessa avó. O que deixou a filha distante, indiferente a elus?
Uma observação, talvez o antepenúltimo parágrafo “Minha mãe não saiu do carro, permaneceu…”, se tivesse colado ao anterior, seguido de dois pontos evitaria a ambiguidade do tempo. É preciso voltar ao parágrafo após a leitura inicial para se certificar que há um flashback ali.
Aproveitamento do tema:
Muito bem aproveitado. Está tudo bonito. Parece um lugar meio comum na escrita esse tema, mas se saiu para você, você poderia usá-lo.
Enredo:
Tudo acertado. Gostei do jogo de tempos, dessa memória narrativa que cruza o presente. A imagem do avô, do antiquário, da mãe que não abraça o pai.
Escrita:
Poética e acertada para o tema. Um ponto, cuidado com a palavra LITERALMENTE. Você escreveu: “literalmente um corredor com relíquias empilhadas”, não consigo imaginar um sentido figurado para essa frase.
Impacto:
Dos contos que li até o momento, esse é o mais poético, mais delicado. Gostei bastante.
Oi Vetus,
Texto lindíssimo e muito bem escrito. A cada medida em que lia, imaginava as cenas na minha mente e me bateu uma tristeza pela saudade que você sentiu.
Não é fácil conviver com a ausência de pessoas que tanto amamos. A sua história foi muito tocante.
Sucesso com o seu conto!
Olá, Vetus, tudo bem?
O tema proposto foi abordado com sucesso.
A narrativa parece se desenvolver em dois períodos de tempo paralelos: a adolescência do narrador e o momento de despedida do antiquário. Um parágrafo fala de um tempo, o próximo do momento mais recente. Pode criar uma certa confusão a princípio, mas depois o leitor se acostuma e a leitura flui sem grandes entraves.
Nada mais representativo do passado do que um antiquário.
Parabéns pela participação no desafio e boa sorte.
Embora com algumas frases clichês, o texto tem uma ótima narrativa, descreve o ambiente da loja com eficiência e habilidade.
O final é meio confuso, para não dizer, confuso, parecendo que o avô está morto/vivo (achei que era zumbi),
mas acho que o autor mesclou uma cena do passado com a do presente sem a devida identificação temporal.
No mais considero um bom conto que atende ao tema, saudade.
Um texto que requer muita atenção quanto ao tempo. Existe uma alternância sutil entre épocas, e, compreendido isso, fica evidente o tema “saudades”.
Belíssimo texto! Bem escrito, bem revisado, palavras cuidadosamente escolhidas. E o desfecho: “— Eu também te amo — respondi depois de tantos anos.”, é de arrepiar.
Uma história que se passa em tempos mais antigos, de uma geração de avô que era mais contido na maneira de demonstrar o amor pelos netos. Tudo era muito formal, era mantida certa distância dos carinhos. Em algumas famílias, o mais efusivo gesto de proximidade era o beijo na mão. Esse era o costume.
Quanto à rebeldia do neto, nada de anormal. A adolescência sempre foi uma fase difícil, a bomba hormonal, acionada, sempre será turbulenta. No caso, Vetus era mais atirado, chegava a contestar ordens. Mas nada que não fosse cortado com uns bons tabefes. Nem todo avô chegava “aos finalmentes”. Costumeiramente, bastava um olhar para que o avô se fizesse obedecer.
Não observei qualquer deslize na escrita. E a construção do conto está bem trabalhada, exige do leitor certo cuidado, localizar-se no tempo é fundamental.
Gosto de ousadia de recursos, ainda mais quando o autor tem domínio sobre a técnica.
Parabéns, Vetus! Seu texto é primoroso!
Boa sorte no desafio!
Abração…
Conto bem escrito.
Algo me escapou, especialmente no final, quando diz:
‘Minha mãe não saiu do carro, (…) meneando brevemente a cabeça quando o viu’. Pensei: viu quem? Esse questionamento porque àquela altura pensei que o personagem avô já estava morto.
Na trama, traz a ideia de um jovem clase média mimado com algum arrependimento sobre o que não viveu. Por isso, o tema do conto está mais para nostalgia do que para saudade.
Gostei de ler, o final é bonito.
Oi Vetus.
Um rapaz visita o velho antiquário do avô, que será vendido após sua morte. Um avô com o qual ele teve pouco contato, mas que causou impacto em sua vida. Este conto fala sobre a saudade de uma pessoa e também das coisas não vividas.
Gostei, achei tudo muito bonito e bem escrito e totalmente de acordo com o tema.
Parabéns e boa sorte.
Kelly
O autor do conto fez o melhor que pode com o tema que não é nada criativo. A saudade, a nostalgia foi bem trabalhada, bem transmitida, em um texto correto, dosado, bem escrito. O autor tem domínio da língua e da narração, e o usa para produzir o efeito que pretende. É piegas, mas não mais do que o tema requer. É tudo culpa do proponente do tema.