In memoriam │ Jorge Santos

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Ao longe, Kintera ouvia o barulho dos processadores de atmosfera. O incessante matraquear tornara-se um dos muitos ruídos da gigantesca metrópole em que se transformara Londres. Sem eles, o ar tornaria-se irrespirável, mas essa não era uma preocupação para o homem que corria pelas ruas desertas da parte antiga da cidade para salvar a sua vida. O seu perseguidor era ágil, um vulto vestido de negro. Qualquer um dos dois tinha implantes nos membros. No mundo em que viviam, não podia ser de outra forma: ou faziam upgrades ou morriam. Kintera saltou um muro. O coração acelerou. Aumentou a potência dos músculos mecânicos das pernas. O primeiro disparo rebentou uma parede à sua esquerda. Virou repentinamente à direita. “Porra”, pensou, um segundo antes de sentir uma dor aguda na perna. O rebentamento lançou-o violentamente contra o chão. O projétil era robotizado, penetrou-lhe no sistema e desativou-lhe os implantes. O desconhecido aproximou-se. Por cima deles, um planador esférico pairava a cinco metros de altura. Mesmo caído, Kintera disparou contra o planador. A bala seria capaz de penetrar qualquer blindagem, mas não teve qualquer efeito no planador. A reação do seu atacante foi imediata. Kintera sentiu uma dor aguda. Massajou o coto do braço, olhando com raiva para a mão caída no chão. Encarou finalmente para o desconhecido, ou para aquele que pensava desconhecer, mas não havia muita gente que não soubesse quem era Liam Ko, o anjo negro. O assassino estava desaparecido, diziam que estava morto. Não faltavam interessados.           

– O que queres de mim?

Liam Ko não respondeu. O planador aproximou-se. A blindagem abriu-se para mostrar o interior. Uma mulher de rara beleza olhava Kintera de uma forma inexpressiva.

– Ando atrás de ti há meses. – Disse Liam Ko numa voz grave, mas tão impassível como a beleza da mulher.

– Nunca te fiz mal, Liam.

– Vou reavivar a tua memória. Assaltaste a minha casa.

Kintera abanou a cabeça. Assaltar a casa de Liam Ko? Nunca…

– Não te lembras, pois não? Vou ter de te chamar à razão.

Liam Ko fez Kintera perder a consciência, comandando o trojan que instalara no sistema de implantes de Kintera. Quando este acordou, sentiu um fedor imenso e um barulho que lhe custou a reconhecer. Estava pendurado de cabeça para baixo sobre um curral de cerdoxes, porcos geneticamente alterados, enormes, que tentavam freneticamente arrancar-lhe a cabeça.

Muuaji Ko tinha uma faca na mão. A esposa, Lillith, estava por trás dele. Continuava com o rosto inexpressivo.

– Um memorian de titânio. Lembras-te agora?

Kintera a princípio disse que não, mas depois reconheceu o seu erro.

– Eu não sabia. Se soubesse…

– Tinha as memórias de Lillith. Era o seu fetiche. Queria fazer amor como se fosse a primeira vez. Por isso lhe tirava as memórias, que guardava no memorian. Depois voltava a repor. Mas naquela noite alguém entrou na nossa casa quando saímos para o bar, e roubou a cápsula. Sei que é mercadoria muito procurada, mas quero o memorian de volta.

Kintera entrou em pânico, o que fez apenas com que o seu captor sorrisse.

– Eu posso entregar-to, podemos conversar.

– São as nossas memórias, percebeste? Tens noção do que nos roubaste?

– Eu …

– Estás a mentir, Kintera. A honestidade nunca foi o teu forte. Se bem que nos tempos que correm a honestidade não é o forte de ninguém, muito menos meu. Queres que te dê as más notícias? Também eu estou a mentir.

Kintera gelou. Sentiu o cheiro da morte, um cheiro ainda mais forte do que o que vinha do curral dos cerdoxes, três metros abaixo da sua cabeça.

– Vou-te contar a minha história, Kintera. Eu procurei por ti estes meses todos. Levava Lillith para todo o lado. Ela não tinha noção de nada. Mas sabes o que aconteceu? O amor encontra sempre um caminho. Percebes? Já temos as nossas memórias. Umas memórias diferentes, que não vou deixar ninguém roubar. Não precisamos das memórias antigas, pois não, amor?

Lillith aproximou-se. Liam abraçou-a e beijou-a apaixonadamente. Pareciam um anjo e um demónio. Kintera viu-lhes a morte nos olhos, tão sequiosos de sangue como os cerdoxes. Lillith pegou na faca que Liam tinha na mão e, num gesto decidido, cortou a corda.

Tema: Cyberpunk

20 comentários em “In memoriam │ Jorge Santos”

  1. Olá, Lilith Ko!

    Eu gostei bastante do conto. Confesso que não conhecia cyberpunk e precisei pesquisar rs. Você atendeu muito bem ao tema sugerido. Eu, particularmente, achei o tema difícil, mas você foi muito bem. A escrita é ótima, fluída e consegue prender o leitor, tem bastante domínio e não observei desvios gramaticais que atrapalhassem a minha leitura. Certamente eu coloco como um dos destaques desse desafio, principalmente por causa do tema.

    Sucesso pra ti!

    Boa sorte!

  2. Uma narrativa cativante que se detém na ambientação ao passo que também apresenta um enredo de acerto de contas. Achei que esse cuidado em contextualizar pesou um pouco na leitura, mas, ao mesmo tempo, o cenário se torna vivido e a história ainda cativa a leitura.

  3. jowilton amaral da costa

    O conto narra uma perseguição que acontece nas ruas de uma Londres Cyberpunk. O enredo é um thriller cyberpunk bem feito, que nos levou para cenas de ação também muito bem criadas. A narrativa é boa, só achei que os nomes das personagens foram repetidos muitas vezes, o que me incomodou um pouco. E você mudou o nome do anjo negro no decorrer do texto. O tema foi executado com sucesso. Boa sorte no desafio.

  4. Olá, Lilith! Em que pese o tema futurista ser campeão de audiência, acho que vc conseguiu trazê-lo com frescor, seja na originalidade da escolha dos nomes dos personagens, seja em criaturas inventadas, como os cerdoxes. Detalhes assim dão um colorido à narrativa. Não sou nenhum especialista em ficção científica e quetais, mas acho que vc conseguiu trazer um ambiente e uma narrativa fechada em si em um conto curto, o que por si já é louvável. Sua sintaxe lusitana me fez saber que o verbo “massajar” tb existe 🙂

  5. Olá, Lillith! Tudo bem?
    Gostei do tema. Bem legal! E o conto está totalmente dentro da proposta. Gostei bastante! Está bem escrito e gostoso de ler. Primeiro estranhei os diálogos tão formais, mas depois me acostumei. A história é cheia de ação e um toque de suspense, perguntas que são logo respondidas, até pelo limite de palavras mesmo. Acho que seu conto brilharia muito mais em um limite maior.
    Só não entendi uma coisa… Quem é Muuaji Ko afinal? É o Liam mesmo? Uma referência que não peguei?
    Parabéns pelo conto!
    Boa sorte no desafio e até mais!

  6. Anna Carolina Gomes Toledo

    Para uma apreciadora do Ciberpunk 2077 e da temática em si, achei sensacional construir personagens tão mesquinhos e cruéis. Isso é puro suco de Ciberpunk! Gosto do tempo da história, um recorte preciso dos eventos sem exagerar no tempo das descrições e que contempla tudo que precisamos para gostar da história. Muita gente peça pelo excesso daqui sinto que está na medida certa.
    Adoraria ler uma tonelada de páginas assim, obrigada!

  7. Fernando Dias Cyrino

    Ei, Lillith Ko. Olha primeiro para lhe dizer que nunca havia lido um conto dessa temática cyberpunk. Senti-me um grandessíssimo dinossauro, sabe? Mas conto-lhe, Lillith Ko, que gostei. A história está bem encadeada. Puxa, você começa a duzentos quilômetros por hora, mas senti que cria uma barriguinha no meio da história. Será que as descrições? No final há uma tentativa de recuperar aquela velocidade estonteante do começo da narrativa… Obrigado por ter me apresentado à temática. Bem, o que mais dizer? Parabéns e sucesso no desafio.

  8. Olá Lilith. Gostei do ambiente do seu conto. O tema cyberpunk é dos meus favoritos e você conseguiu tratá-lo com eficácia. Só não gostei de algumas falhas ao nível da gramática e da troca do nome de um personagem. Agradecia uma revisão mais cuidada no futuro. O investimento de tempo por parte dos comentadores é de tal forma grande que encontrar um texto com problemas de revisão é desmotivador. Fora isso, parabéns.

  9. Ana Luísa M. Teixeira

    Oi Lilith!
    Tudo bem?

    Você conseguiu atender bem ao gênero, que, apesar de não ser meu favorito, foi bastante interessante de ler, criativo achei.
    Apesar de ter entendido o título, o mesmo não me apeteceu muito. Está bem escrito e bem estruturado, mas achei o fluxo do texto meio trincado, não há uma fluidez boa, na minha opinião. A ambientação é muito bem construída e se encaixa perfeitamente na temática do Cyberpunk.

    Parabéns pelo texto e boa sorte!

  10. Buenas, Lilith.

    Gosto muito da temática do cyberpunk. O conto segue a zona de conforto deste gênero, tecendo uma história pouco impressionante pra quem está acostumado com essa narrativa. Admito que tive problemas com as justificativas constantes, decisão que tirou espaço para enriquecer a ambientação, mas entendo sua escolha. Hoje em dia, os leitores exigem uma literatura mais fácil. É normal nos adaptarmos ao que o mercado exige.

    A escrita é excelente e mostrou domínio narrativo dentro da literatura fantástica, tendo perícia descritiva das cenas de ação e afins. Por isso, o espaço que perdeu se justificando, poderia ter enriquecido ainda mais a trama e a ambientação.

    Parabéns pelo texto e participação! Vamos que vamos.

  11. Olá,
    Adorei o texto. Muito legal quando tem autores de fora do Brasil por aqui, é bem interessante apreciar as variações da língua portuguesa. A ambientação é muito bem feita, assim como o background dos personagens é muito bem apresentado. Para mim, o pequeno deslize cometido é a quantidade de diálogos expositivos, que quebram um pouco o ritmo do texto em um certo trecho. Além de ir de encontro ao “mostre, não conte”, também entra no clichê do vilão explicando os seus planos para a vítima. Mas tirando isso é um texto realmente fantástico.
    Boa sorte!

  12. Lillith Ko,

    Puxa, que interessante um texto em português que não seja brasileiro. Dá um certo receio de apontar qualquer coisa e demonstrar minha inabilidade em ser bilíngue. Prometo que lerei mais autores africanos e portugueses.

    Mas falando da história em si. Achei o primeiro parágrafo, as descrições e ambientações incríveis. Me trouxe para um universo Mad Max. Quando passa para a narrativa dos eventos pós captura, para mim, perdeu um pouco de potência. O casal vingador captura o ladrão e, antes de matá-lo, resolver explicar tudo o que se passou e o motivo de estarem fazendo o que estavam fazendo rsrsrs. Sei que isso é muito usado em narrativa, mas me parece um caminho um pouco fácil.

    Tirei um trecho para ilustrar um pouco da dificuldade que imagino alguns leitores brazucas vão encontrar.

    “– Tinha as memórias de Lillith. Era o seu fetiche” – fiquei um bom tempo pensando, o fetiche era de quem? Depois entendi, claro, que o fetiche era da Lilith.

    Mas, no geral, gostei do tema. Não sei se foi proposta original do autor ou se foi sorteado. Mas para mim, o texto está adequado ao tema.
    A história é uma das mais interessantes, a escrita desafiadora e o universo pouco comum deixaram tudo instigante. Estou ansioso para encontrar o seu segundo texto.

  13. Claudia Roberta Angst

    Oi, Lillith, tudo bem?

    O conto abordou o tema proposto, aliás um tema que considero bem complicado de desenvolver, mas você conseguiu com sucesso. Percebi um leve sotaque lusitano na escolha de palavras e conjugação dos verbos.
    Estranhei só dois pontos:
    – Massajou o coto do braço,
    – entregar-to
    Percebo a criatividade no desenvolvimento da narrativa, mas não consigo me ligar na temática FC, cyberpunk, etc. Falha minha. Com certeza, o conto apresenta tudo o que pode encantar outros leitores como ação, aspectos de um futuro distópico, personagens singulares, com um toque de marginalidade e estranheza, etc.
    Parabéns pela participação e boa sorte!

  14. Oi Lillth Ko,

    Achei a história interessante, apesar de não ter me encantado tanto.
    Concordo com Kelly quando disse que o conto está cheio de ação (o que prende a atenção desde o início) e a ambientação bem feita.
    Quanto mais detalhes o texto tiver, melhor para o leitor poder imaginar e adentrar na fantasia.
    Sucesso com o seu conto!

  15. Regina Ruth Rincon Caires

    “Cyberpunk, palavra originada a partir da cibernética, traz uma visão de universo underground da sociedade, ou seja, visão de contracultura, pois foge dos padrões impostos na intenção de obter novos espaços para expressão.
    Os personagens do cyberpunk clássico são seres marginalizados, distanciados, solitários, que vivem à margem da sociedade, geralmente em futuros distópicos onde a vida diária é impactada pela rápida mudança tecnológica, uma atmosfera de informação computadorizada ambígua e a modificação invasiva do corpo humano.
    Muuaji = murderer, killer (assassino, matador)”
    Tema a ser explorado: Cyberpunk (Nem preciso dizer que “GOOGLEI”, né? )

    Texto brilhantemente escrito. Se o leitor, sem pensar em avaliação própria deste desafio, simplesmente tentar fazer uma interpretação de texto, vai perceber que a escrita é perfeita. Não há qualquer embaraço para compreender a história. Basta observar o primeiro parágrafo, que é extenso. Os detalhes são tão ricamente descritos, que, conforme a leitura fluiu, eu consegui me colocar na cena. A narrativa é detalhada, clara. Estou falando sobre a qualidade da escrita, falo da descrição, da ambientação, independentemente do gênero, sem levar o encantamento (ou não) pelo tema. Claro que há alguns (poucos) deslizes pronominais e algumas vírgulas bailarinas com passinhos trocados, mas nada que uma leve revisão não conserte. Agora, a clareza do narrar é imensa.

    O uso da segunda pessoa nos diálogos, que eu acho extremamente difícil de construir, levou-me a imaginar que o autor pode ser lusitano (ou sulista?). Ao final, saberemos.

    Quanto ao termo “negro” utilizado pelo autor, serviu como referência para identificar Liam Ko, ou Muuaji Ko. Observar que “muuaji” significa “murderer, killer” (assassino, matador). Acho que pesquisei corretamente.

    Kintera roubou um memorian de titânio, no qual estavam as memórias gravadas de Lillith. Essa memória era retirada para que, como fetiche, a “mulher” fizesse amor sem memória, para que sentisse prazer como se fosse a primeira vez. A descrição do rosto inexpressivo, usada pelo autor, mostra exatamente que a partir do roubo, Lillith (sem memória), passou a construir outra reserva de memória, e para Liam Ko isso foi imperdoável.
    “– São as nossas memórias, percebeste? Tens noção do que nos roubaste?”

    Mesmo com Lillith desmemoriada, o casal superou a dor. E foi através do amor.

    Kintera ficou com a pior parte. Morreu.

    Portanto, dentro da minha avaliação, o texto é muito bom, respeita o tema, é compreensível, proporciona uma leitura sem embaraços.

    Parabéns, Lillith Ko (In Memorian??????????)!

    Boa sorte no desafio!

    Abração…

  16. antonio stegues batista

    O conto inicia bem, fazendo uma descrição de uma Londres coberta pelo fog nocivo,
    a cidade dependendo de seus pulmões mecânicos para sobreviver.
    As pessoas possuem partes biomecânicas do corpo, como armas e chips neurotransmissores, além de aparelhos de memória.
    Hoje mesmo, Elon Musk está fazendo seus experimentos com o Neuralinik, que tornará Altered Carbon, uma realidade.
    O enredo não traz nada que seja novo em termos de Cyberpunk, mas a história é interessante. Gostei.

  17. Um conto de difícil entendimento para mim. Não consegui formar e acompanhar as imagens trazidas pelo conto, nem fazer relação com o título. Em algum momento me perdi.
    Na segunda linha diz: ‘tornaria-se’. Na norma culta seria ‘tornar-se-ia’. Então, se é para deixar mais coloquial, valeria escrever ‘se tornaria’, porque ‘tornaria-se’ soa ruim.
    Quando diz ‘um vulto vestido de negro’, tenho uma observação: na língua portuguesa ‘negro’ não designa cor, logo poderia dizer ‘vestido de preto’.
    Por que usar o português de Portugal aqui: ‘Estás a mentir, Kintera’ ? Por que não dizer ‘estás mentindo’?
    Penso que o conto contemplou o tema pelos elementos da trama.

  18. Oi Lillith.

    O conto é cheio de ação e já começa com intensidade e isso é bom. A premissa também é bem interessante. A ambientação é bem feita, o que é muito importante em um cyberpunk. Porém, a história me parece grande demais para o limite de palavras, o que resulta algo confuso. Quem é Kintera e por que ele roubou o memorian? Quem é Muuaji Ko?

    Quanto ao tema, foi bem explorado.

    Parabéns e boa sorte!

    Kelly

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