Horto das almas │ Antonio Stegues Batista

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O dia nasce, as aves cantam na mata. Uma brisa leve sopra sobre as águas do rio, agita os juncos que crescem nas margens. Da mata emana o cheiro do humo, do campo odores diversos, suaves, vagos

Gabriel sai de casa e atravessa a campina em direção ao cemitério no alto da colina. No caminho vai colhendo algumas flores silvestres, dente-de-leões, margaridas, anêmonas. Aquele é um dia especial de um acontecimento que ocorre todos os anos. Dia que não podia faltar por questões morais e éticas. Tal obrigação foi imposta a ele, por ele mesmo. Talvez hoje seja o dia de Lydia, pensou.

Chegando ao campo santo, vai direto a um banco de madeira e ali senta-se, ficando à espera. A hora é incerta, imprecisa e não sabida. Quando o fenômeno acontece, despertados por vibrações telúricas e radiações cósmicas, os mortos se erguem de suas tumbas, não os invólucros materiais, muitos já deteriorados, mas seus espíritos que estavam adormecidos num sono letárgico, purificador. Confusos, saem em busca de sua vida passada, o médico retorna ao consultório, o operário ao local de trabalho na fábrica, o escriturário, ao escritório, a dona de casa, ao seu lar.

Lydia avista Gabriel sentado no banco e vai até ele. Envolta numa aura luminosa, tem no rosto a expressão da inocência, da beatitude.

— Sente-se aqui – pede Gabriel, batendo com a mão no assento. Ele sente aquela alegria sedativa que aliviava a pressão que a saudade oprimia no peito. Sua vontade é abraçar a imagem translúcida da falecida esposa, mas sabe que é impossível. No entanto, oferece a Lydia o ramalhete de flores que ela pega sorrindo, com um olhar de ternura e agradecimento.

Ele conversa com a esposa, morta há oito anos, como sempre fez quando visita seu túmulo. Conta o que tinha feito naqueles últimos meses. Diz que foi ao médico, revela que os exames deram normal, que o médico recomendou continuar tomando levotiroxina em jejum e sinvastatina após o jantar. Conta a sua rotina, seu dia-a-dia. Lydia ouve com atenção e de vez enquanto sacude a cabeça em sinal de entendimento.

Enquanto isso, os outros falecidos chegam ao seu local de trabalho e descobrem que tem outra pessoa ocupando a sua vaga. Chegam à sua casa, tem outros morados, ou outra pessoa na sua cama. Descobrem que não podem fazer mais nada daquilo que faziam antes. Tentam retomar o cotidiano, tomar banho, trocar de roupa, comer, ver televisão, conversar. Descobrem que não conseguem fazer nada disso, pois são sombras, espíritos, corpos sem matéria. Antes do anoitecer, voltam frustrados e extenuados para dentro dos muros brancos, para seus leitos subterrâneos que os atraem com seus fluidos magnéticos. .

Lydia abriu a boca para dizer alguma coisa, mas algo chama sua atenção, olha para o alto e sorrindo, sua imagem se desvanece, as flores se fragmentam em átomos plásmicos e se misturam à essência dela, que se transforma num filete de luz.

Gabriel fica olhando até o ponto brilhante sumir nas alturas. Depois baixa a cabeça, enxuga os olhos, enquanto sente um manto de paz cobrir seus ombros. De alguns túmulos também saem uma luz em forma de gota, em direção ao céu. Os outros terão que esperar a sua vez.

Gabriel levanta-se, dirige-se para um canto do cemitério para pegar o carrinho- de-mão e as ferramentas. Tem um novo morador chegando.

Tema: Cemitério

18 comentários em “Horto das almas │ Antonio Stegues Batista”

  1. jowilton amaral da costa

    O conto narra a história de Gabriel, que uma vez por ano recebe a visita de sua falecida esposa, neste dia todos os espíritos saem para encontrar seus entes queridos ou visitar seus lugares favoritos. O enredo é bom e bem conduzido. A narrativa é boa, madura e delicada, cheia de boas frases e um tom poético aqui e acolá. O tema foi bem executado. O impacto em mim é que não foi grande, a história não me emocionou o suficiente para ter gostado muito. Boa sorte no desafio..

  2. Anna Carolina Gomes Toledo

    Que conto bom! O lirismo aqui suaviza a situação delicada da morte. Gosto do personagem protagonista, o jeito carinhoso que ele trata o momento, a sensação de que se trata de um ritual e, mais ainda, ele mesmo ser um conhecedor da situação por trabalhar no cemitério aumenta a expectativa daquele momento. A restrição de palavras aqui não parece um problema, tudo aparece no tempo certo para cumprir sua parte na história, com um final simples, mas muito bonito.

  3. Belo, mórbido e com personalidade. O tema é contemplado em uma história fantasmagórica e luminosa, sentimos a dor do personagem e das almas vagantes, o luto conduz a narrativa de maneira agridoce, pois ainda resta um mínimo de resolução. Dentro do limite de palavras bem estrito, ainda conseguiu entregar um conto marcante, com início, meio e fim, personagem que se sente e adequado ao tema.

  4. Olá,
    É um texto bem delicado. Bonita essa relação criada não só entre Gabriel e Lydia, mas entre a vida e a morte. Achei que a informação de que Gabriel era o coveiro ficou um pouco deslocada no final, poderia integrar melhor com o texto. Ela não causa surpresa ou altera o entendimento da história. Outro ponto é a narração em tempo presente. Teria algum motivo especial para essa escolha?
    Boa sorte!

  5. Ei, Luz Neon, pois é, você escreveu uma história leve a partir de um tema já naturalmente bem pesado. Ficou legal seu conto. Alguns deslizes que uma boa revisão será capaz de sanar. O final ficou ótimo. Lydia a esposa falecida há oito anos e Gabriel, o coveiro que se prepara para receber um novo morador no seu Horto das Almas. Que você tenha muito sucesso no desafio.

  6. CLAUDIA ROBERTA ANGST

    Oi, Luz Neon, tudo bem?
    O conto aborda o tema cemitério de forma bem poética. Narrativa construída com sensibilidade.
    Há pequenos erros carecendo de uma revisão, mas é coisa pouca.
    No mais, o texto consegue envolver o leitor em uma névoa de sensações e sentimentos. Há um toque quase terror pela ambientação do conto, mas que se dissolve em poesia.
    Parabéns pela participação e boa sorte.

  7. Buenas, Luz Neon!

    O conto mais bonito do desafio. Escrita simples e cuidadosa, com erros pequeninos que não interferem no resultado final, tendo um tom levemente poético no fundo. Gosto muito deste estilo, sabe? Desperta sensações boas. Tudo leve.

    Entendi que o despertar das almas acontece uma vez ao ano. A iluminação delas, o entendimento de que estão mortas e a aceitação ocorre neste período. E se a alma não conseguir, pode conseguir no próximo ano. Senti falta de alguma menção sobre este dia especial, além da inicial, claro. Mencionar os outros encontros com a alma da esposa poderia ajudar alguns leitores a captarem esse detalhe. Mas, também, pode ser sua decisão não desenhar a história. Faço a mesma coisa, então, não te culpo, se for o caso, hehe.

    Aliás, gostei muito do fato de que Gabriel é o coveiro, mas também é o jardineiro das almas, sendo sensitivo. Por isso, o nome do conto é perfeito. Fico imaginando se Gabriel escolheu essa profissão por coincidência ou vocação. Algumas pessoas despertam a sensitividade mais tarde, na vida, por necessidade ou acaso.

    Parabéns pelo texto. E vamos que vamos!

  8. Gostei bastante do seu texto. Era interessante que isto pudesse acontecer, um dia em que estávamos novamente com os nossos entes falecidos. Gostei da forma poética com que descreveu uma cena que eu, muito provavelmente, transformaria num banho de sangue e horror. A linguagem é simples e clara. Poderia ser algo mais complexa. A necessidade que sentiu em explicar tudo faz com que o texto se torne previsível e perca algum do seu interesse. Mesmo assim, estamos perante uma excelente ideia, tratada de uma forma eficaz.

  9. Regina Ruth Rincon Caires

    Acredito que o texto cumpre o tema. O autor narra, detalhada e poeticamente, o percurso diário do personagem Gabriel, de casa até chegar ao trabalho dele. É funcionário do cemitério. A única diferença é que, no conto, aquele seria um dia especial. Dia em que as almas saem dos túmulos para visitarem suas antigas casas, seus locais de trabalho, conversar com seus familiares. Depois disso, algumas vão descansar eternamente, livres, e poderão finalmente subir aos céus. Outras retornarão às tumbas até que estejam totalmente purificadas.

    E Gabriel vai ter o último reencontro com a esposa, que morreu há anos. Tudo é muito poético. O autor descreve com muita suavidade a passagem da esposa para a vida eterna, a subida aos céus.

    O texto traz alguns deslizes de escrita. Acredito que uma pequena revisão será suficiente.

    Luz Neon, parabéns pelo trabalho!

    Boa sorte no desafio!

    Abração…

  10. Oi Luz Neon.

    Ah, que conto lindo…

    Tão doce, este último encontro de Lydia e Gabriel, o coveiro. Atendeu perfeitamente ao tema, de forma criativa e leve. Um realismo fantástico romântico, muito bem escrito e bem desenvolvido.

    Amei.

    Parabéns e boa sorte.
    Kelly

  11. Ana Luísa M. Teixeira

    Oi Luz Neon!
    Tudo bem?

    Achei o texto lindo! De uma poesia tremenda. O tema foi abordado de maneira sensível e a criação da atmosfera está impecável. Bem escrito e acredito que atenda bem ao tema. Li em um dos outros comentários que não atenderia por se tratar de uma situação que é passada em um cemitério e não sobre o cemitério em si, mas acho que esse ponto poderia ser discutido. Acredito que a situação toda só se deu por se tratar de uma cena passada em um cemitério. Por isso entendo que atende sim à temática.

    Encontrei alguns errinhos de digitação ou de revisão, mas nada muito brutal:

    “de vez enquanto sacude a cabeça em sinal de entendimento” – acredito que o correto seja “de vez em quando sacode (ou até sacudia caberia aqui também, acredito), em sinal de entendimento” e
    “morados” – ao invés de (o que eu acredito ser), moradores.

    Gostei muito do texto de uma maneira geral, parabéns!

    Boa sorte!

  12. Oi, Luz Neon,

    Que bonita a imagem de podermos ficar um pouquinho na terra até estarmos preparados para irmos para o céu!

    Seu conto é muito interessante. Que privilégio do Gabriel de poder se despedir aos poucos. 8 anos para que eles possam se separar em definitivo.

    Alguns detalhes que poderiam ter deixado a experiência de ler o conto mais interessante: houve algum acontecimento para que a passagem da esposa do Gabriel ocorresse? Se não, pq ela não foi antes? Se estava presa a ele, poderia ter explorado mais a imagem da aceitação da morte.
    Vi que no trecho “para seus leitos subterrâneos que os atraem com seus fluidos magnéticos. .” há um ponto sobrando e fiquei pensando se não foi apagada uma frase, possivelmente pelo limite do desafio, que faria uma ligação melhor que o desfecho de Ligia.

    Outro ponto que me pegou foi essa ideia de “fluidos magnéticos”, “vibrações telúricas” e “radiações cósmicas”. Me pareceu uma tentativa de dar uma linguagem científica a um fenômeno essencialmente espiritual. Sei que o espiritismo se entende mais como ciência do que como religião. Em um texto de pesquisa e estudo, essa abordagem pode funcionar, aqui tirou um pouco da poesia e da sensibilidade. Pelo menos para mim.

    De um modo geral, o tema foi entregue. Os erros de digitação demonstram que não houve tempo para uma revisão mais detalhada. Mas no todo o conto funciona e valeu muito a leitura.

  13. ANTONIO STEGUES BATISTA

    O conto transforma a morte em algo até bonito de se ver.
    As almas, como chamas, subindo ao céu depois de um período de purificação.
    Cemitério não combina bem com horto, de qualquer forma pareceu um sentido figurado, desfazendo a ideia sombria deles.
    Gabriel visita o túmulo da esposa regularmente e como coveiro, tem o dom de ver os espíritos subirem ao céu. Gostei.

  14. Olá, Luz Neon!

    Observei alguns desvios gramaticais que poderiam ser evitados com uma breve revisão: como uso inadequado de vírgulas (ou a falta em alguns trechos), repetição de palavras em períodos próximos sem ter um sentido poético para tal, uma sequência de termos sinônimos que não trazem muito efeito para o conto e falta de acentuação. A exemplo, temos a ausência da crase em “oferece a Lydia”, o qual deveria ter o acento por causa da regência verbal nesse contexto. Em relação à história, é um enredo simples, com uma sequência cronológica linear e com uso de termos, em sua maioria, no sentido denotativo. O final causa uma certa estranheza, mas não atrapalha o entendimento do texto. Gostaria de ler outros textos seus e espero vê-lo nos próximos desafios.

    Sucesso pra ti!

    Boa sorte!

  15. Temos um texto curto, uma sequência lógica e linear de acontecimentos.
    É uma leitura fluida. Mas está tudo dito, colocado em primeiro plano, única camada.
    Faltou revisão no conto.
    Meu conselho: evitar o uso excesivo do pronome relativo ‘que’.
    No lugar de ‘sacude a cabeça’, dizer ‘sacode a cabeça’.
    No lugar de ‘morados’, corrigir para ‘moradores’.
    Valeu a leitura !

  16. Olá, Luz Neon! Tudo bem?
    Eu gostei do seu texto. É muito bonito!
    Se eu entendi bem, Gabriel é o coveiro daquele cemitério e sua esposa está morta há oito anos, mas todo ano, em uma determinada época, os espíritos saem dos túmulos e vagam por aí e ele aproveita para matar um pouco a saudade. E no final do dia as almas que estão prontas, vão enfim para o céu e as outras voltam ao sono da morte. E você narrou o último encontro, o dia que Lydia vai para o céu. Achei poético!
    Algumas coisinhas passaram na revisão, mas nada que atrapalhe a leitura.
    Boa sorte no desafio e até mais!

  17. Olá, Luz Neon. “A hora é incerta, imprecisa e não sabida” me pareceu redundante. Além disso, faltou uma revisão. “de vez enquanto sacude a cabeça em sinal de entendimento” é “de vez em quando sacode…”, “morados” é “moradores”, faltou plural em “outros falecidos chegam ao seu local de trabalho”… Erro muito comum: misturar tempos verbais. O conto vem no presente e, de repente, “Lydia abriu a boca para dizer alguma coisa”. O final me deu a entender q Gabriel trabalha no cemitério, como coveiro. Mas não faria muito sentido pq no início ele está se preparando para uma ocasião especial, e não corriqueira para ele.

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