
Nossa chegada foi em um dia de festa. Acompanhamos junto com outras famílias a inauguração do centro de reciclagem de material eletrônico, no local do antigo aterro sanitário, iniciativa de uma grande corporação. Para nós, seria um novo começo, após papai ter perdido o emprego na fábrica, já que os robôs substituíram os humanos em quase tudo. Mesmo com onze anos, eu teria que ajudar no trabalho.
A coisa não era muito diferente do antigo aterro: os caminhões despejavam o material que a sociedade desprezava, e centenas de pessoas se estapeavam para pegar alguma coisa que ainda tivesse certo valor. Havia, certamente, menos ratos e urubus, mas mais materiais cortantes e metais pesados. Havia a exigência ridícula de se cadastrar em um app para poder catar e vender a sucata, e como não pagar por um celular, o jeito foi ir até o centro da cidade, abordamos algum bacana distraído e pernas pra que te quero.
Catar era só o começo: precisávamos vender o material, acompanhando as mudanças nos preços. O app mostrava um gráfico com uma linha que subia e descia constantemente. Ela era cruel. Vender na baixa significava um dia sem comer. Éramos pagos em criptomoedas, então também era necessário verificar o valor delas. Passávamos horas trocando bitcoin e ethereum para melhorar um pouco a renda, e no final o app ainda ficava com uma parte, como taxa de serviço. Nos dias ruins, íamos até uma fazenda de porcos onde nos deixavam catar as sobras dos animais. Mas tínhamos que esperá-los terminar de comer e tínhamos só dez minutos para pegar tudo. Tudo era permeado por mensagens motivacionais enviadas diariamente falando em superação, pensamento de dono e resiliência. Éramos microempreendedores, parte de uma gig economy, a apenas um passo do sucesso.
Até que um dia as coisas mudaram. Papai chegou em casa com uma peça pesada, ninguém sabia qual era o nome e nem para que servia. Só o peso em metal daria para alimentar a família por uma semana, e após alguns dias sem conseguir achar um comprador, decidimos que esse era o caminho a se seguir. Porém, quando começamos a desmontar a peça, de dentro dela saiu um pó branco. Não tinha cheiro ou outra característica marcante. Coloquei um pouco sobre a língua e vi que não tinha gosto também. Deduzimos que, se precisava de uma peça tão pesada para guardá-lo, deveria ter algum valor. Meu irmão se preocupou de ser algo perigoso, mas ninguém ligou muito.
Quando escureceu, aquele pó começou a se manifestar, emitindo um brilho azul. A luz era hipnotizante, de um tom de cor que ninguém ali jamais havia visto. Como eu passava mais tempo em casa, cuidando das movimentações no app, o brilho azul virou minha companhia. Trazia uma sensação agradável, de calma. Um aconchego em meio à miséria.
Passou-se uma semana. Não conseguimos vender o pó, pois ninguém sabia o que era. E agora, além de tudo, estávamos doentes, vomitando, com febre e vermelhidão pelo corpo. Os médicos no posto de saúde também não sabiam o que era. Até que meu irmão, desconfiado, resolveu mostrar o tal pó ao médico. E aí começou a confusão: uns homens encapuzados nos levaram para um hospital militar. Nossa casa foi destruída e o aterro fechado temporariamente. Nos foi dito que o pó branco era césio, usado para radioterapia, um antigo tratamento de câncer.
Agora, o futuro é uma grande incógnita. Minha família está suspensa do app porque, segundo eles, violamos os termos de uso ao manipular produtos perigosos. Não temos mais como tirar nosso sustento. Quanto a mim, por ter tido uma exposição maior, não sabem se vou sobreviver. Brilho tão hipnotizante, tão lindo, tão letal… Mas somos empreendedores, vamos superar.
Tema: Futurismo num contexto brasileiro
A história narra a história de uma garoto e sua família que viram catadores de lixo eletrônico depois que os robôs tomaram conta dos empregos dos humanos. Numa dessas procuras, eles encontram um material radioativo. O enredo é regular. Acho que a narrativa deveria ser melhor trabalhada para se passasse um pouco mais de emoção, mais densidade, já que a história fala sobre a tragédia do Césio, que ocorreu em Goiânia, há umas décadas. O tema foi bem executado. O conto não me impactou muito. Boa sorte no desafio.
O conto cumpre o tema, apesar de não abusar tanto aqui do conceito futurista do pó tô de vista estético, traz reflexões bem típicas da ficção científica que somada a tecnologia futura resulta em futurismo propriamente dito. Gostei como abordou o Brasil… Há um esteriótipo de como remeter ao Brasil em histórias, resumindo ao que se alcança aos olhos em praias cariocas e botequins. Aqui, há Brasil inclusive na constituição familiar e nas desigualdades sociais. Gostaria de mais detalhes, mas para 700 palavras, fez bem sua parte.
Uma visita ao incidente do césio 137 com um toque mais ou menos sutil de crítica às retóricas individualistas do neoliberalismo. Dos dois contos voltados ao tema, este foi mais bem-sucedido em consistir desse contexto selvagem em que se vive. Gostei da acidez com a qual permeou sua crítica e, de enredo, achei uma boa releitura do incidente. Mesmo considerando o espaço limitado, falta algo ao texto, não sei situar se em seus personagens ou em outra coisa. É como se, ocupado de endereçar sua mensagem, a história contada não comovesse, sabe? Ficou parecendo mais um texto sobre a mensagem do que sobre os seus personagens.
Caramba, Leide, você resgata no seu conto duas realidades terríveis: o tétrico aterro sanitário de Gramacho e o acidente em Goiânia com o césio. Tragédia essa que chegou a gerar até mesmo preconceitos com a cidade. Gostei da história, responde bem ao seu tema. Está tudo legal, tudo bem escrito. E que nunca mais se repitam essas histórias terríveis, não é mesmo? Sucesso no desafio.
Oi, Leide, tudo bem?
O conto aborda o tema proposto.
Boa ambientação da narrativa, sobretudo os detalhes sobre os perigos do lixo radioativo. Triste, assustador, o enredo bem elaborado serve de alerta para todos nós.
Poucas falhas de revisão, nada que tenha atrapalhado a apreciação do texto.
Geralmente esse tema não fisga a minha atenção, mas aqui conseguiu despertar o meu interesse.
Parabéns pela participação e boa sorte.
Buenas, Leide!
Gosto muito de textos que ensinam algo novo. Conhecia a Cidade do Lixo, mas nunca tinha me aprofundado, e, por causa deste conto, acabei pesquisando um pouco mais e conhecendo mais detalhes dessa parte tão triste e icônica do RJ. Achei sensacional a ideia de um novo Gramacho, agora incentivado por uma iniciativa privada, até porque isso foi prometido quando destruíram o lixão e, até hoje, pouco do que prometeram foi cumprido.
Diferente dos colegas, acredito que, sim, o conto tem respaldo para contextualizar o Brasil. O problema é que você simplesmente conta a história ao invés de mostrá-la. Histórias de FC precisam ser mostrados pra funcionar plenamente. Ao invés de explicar como funcionava o sistema do app, poderia mostrá-la numa cena onde as crianças se juntam, esperando o gráfico subir e ele despenca do nada. E, na próxima cena, eles pedindo comida na fazenda de porcos e sendo humilhados, pra mostrar como essas pessoas estão na margem da sociedade. Nestas descrições, misturando o RJ atual com características futurísticas, a ambientação ficaria bem mais forte. Um detalhe que gostaria que fosse melhor desenvolvido foi o fascínio do narrador com o pó brilhante.
Pense no seguinte: o limite do desafio permite com que seu conto se desenvolva por completo? Se não, guarde a ideia para o futuro. Eu cometi o erro de dar corpos pequenos para almas gigantes, por um tempo. Não faça o mesmo.
Parabéns pelo texto! E vamos que vamos.
Olá. Felizmente que não me saiu este tema. Sendo português teria que puxar pela criatividade, e mesmo assim nunca chegaria perto deste texto. Passado no futuro, catadores de sucata tornam-se comuns, e mais do que isso, a única opção de sobrevivência para pessoas com telemóveis. Portanto, não têm com que comer, mas o telemóvel é obrigatório. Neste ponto achei alguma falta de coerência, mas não muito. Quase todos os arrumadores de carros aqui em Portugal têm telemóvel. Porque não no Gramacho em 2100?
O autor narra uma história ambientada no ano 2100, no mesmo lugar em que havia o maior lixão do Rio de Janeiro (Gramacho). Acontece que, no “lixão” de 2100, não há mais material orgânico, nada que seja apreciado por urubus. No lixão de 2100, o material descartado é eletrônico, as pessoas catam sucata. Portanto, para mim, o tema foi cumprido.
Apesar de citar o “césio”, o autor não faz qualquer referência ao caso de Goiânia. Ele fala e descreve o malefício que o césio provoca quando manuseado, fala do mesmo mal que esse componente possuía quando da morte das vítimas de Goiânia. Quanto ao pseudônimo, acredito que foi uma homenagem para a vítima de Goiânia (Leide das Neves). A história se repete, acho que é só isso.
Quanto à fazenda dos porcos, acredito que o autor descreve algum “game”, na verdade não compreendi.
E o desfecho traduz o espírito do brasileiro: “não desiste nunca”…
Acho que, no final do segundo parágrafo, seria necessário rever a redação, deixá-la mais clara. Entendi que as crianças roubaram um celular, mas a leitura ficou bem truncada.
Leide (das Neves), parabéns pelo trabalho!
Boa sorte no desafio!
Abração…
Oi Leide.
Seu conto está bem escrito e descreve o que aconteceu em Goiânia em 1987, o incidente do cesio 137, que vitimou 4 pessoas e atingiu centenas. Porém, senti falta de futurismo e brasilidade. Apesar da história original ter ocorrido em Goiânia, o fato é que ela poderia ocorrer em qualquer lugar do mundo. E, quanto ao futurismo… bom, se a historia original ocorreu em 1987… As referências a apps e criptomoedas trazem a narrativa até os dias atuais, mas não para o futuro.
Boa sorte.
Kelly
Oi Leide!
Tudo bem?
Acredito que o texto tenha sim atendido à temática “Futurismo num contexto brasileiro”, mas o tema do brasileirismo poderia ter sido melhor explorado.
Não achei muito original levando em consideração que se trata de um reconto do caso do Césio 137 ocorrido em Goiânia. Mas valeu a crítica social que você procurou elaborar. Eu ainda colocaria mais elementos que caracterizam o futuro.
De uma maneira geral é um texto bem escrito e sem grandes problemáticas com relação ao idioma.
Boa sorte!
Leide, bom dia!
Vou destacar algumas coisas que achei bem positivas na sua histórias. Primeiro é que há um crítica social. Essa pobreza que vai nos engolindo, nos rodeando, e nos empurrando para cada vez mais longe.
Eu sou um crítico dos críticos dos processos de automação. Sou um otimista quanto ao futuro cibernético. Mas de qualquer modo é uma preocupação. E seu conto cutucou a ferida de como o sistema pode deixar de lado o humano pelo superior e eficiente tecnológico.
Outro ponto que achei interessante foi ter abordado o incidente de Goiânia. E concordo, o que ocorreu na capital de Goiás não foi um acidente de pessoas curiosas e irresponsáveis. Foi fruto de um descaso social, que enxerga a periferia como um grande lixão, o quarto de empregadas da residência humana.
Isso é muito importante que seja abordado em nossas narrativas. Isso é urgente e, pelo visto, chegaremos a 2100 sem solucionar o problema da miséria.
Contudo, faltou revisão no texto. Acho que alguns trechos foram cortados para ficar nas 700 palavras e aí deu errado. Ficou truncado. Exemplo: “…decidimos que esse era o caminho a se seguir” – para usar “esse caminho”, o caminho deveria ter sido citado antes, mas não localizei a citação, se foi citado, será que não foi apagado?; “e como não pagar por um celular” – também parece que alguma ideia foi apagada ou perdida na revisão.
Sobre o tema, eu acho que houve um equívoco. Parece ter associado futurismo com perspectiva para o futuro. Eu acho que a ideia do tema era pensar em uma sociedade futurista. Talvez haja alguma ideia de futuro no seu título, a história se passaria em 2100? Também pode ter algo de futurista na substituição de humanos por robôs. Embora isso já seja coisa do presente. Apesar disso, achei que o restante são todas imagens do presente, em 2100 ainda teremos apps? Celulares? Pode ser que sim, mas num conto futurista espera-se que o autor nos surpreenda com ideias mirabolantes e tecnologias que não dispomos ainda. O modo como se descuida do lixo hospitalar hoje em dia é bem mais delicado do que na data do incidente de Goiânia, mas no seu conto, parece que regredimos.
Dito isso, reafirmo que precisamos muito de autores que problematizem nossa existência no mundo. Que toque nas feridas sociais e as denuncie. Essa preocupação precisa estar na nossa literatura do futuro. Há poucos contos aqui com essa ousadia. Que bom que você não deixou a oportunidade escapar.
Gramacho é um bairro do Rio de Janeiro, com lixões, empresas de reciclagens, fábricas de plástico.
E foi ambiente que você escolheu para contar o acidente do Césio 137 de Goiana no dia 13 de setembro de 1987.
Entrei no Google Street View para dar um passeio virtual por Gramacho.
É um bairro que parou no tempo. Algumas ruas tem uma paisagem antiga e até com ar melancólico.
2100 seria o ano em que a sua história se passa e parece que não mudou quase nada,
há uma citação rápida dos robôs substituindo os humanos nas fábricas.
De qualquer forma, apesar das falhas, achei um bom conto, com um bom enredo.
Com a prática você vai melhorar, com certeza.
Olá, Leide!
Eu gostei de ler o seu conto, está bem desenvolvido e não possui trechos confusos, soltos ou que atrapalhassem a minha leitura. O problema está justamente na adequação ao tema, pois não vejo muito sobre futurismo além das primeiras linhas e, embora a história possa associar ao acidente de Goiânia, não há elementos suficientes que caracterizem o Brasil. Talvez o texto já estava pronto e você tentou adaptar ao tema sugerido, esse é o meu palpite.
Sucesso pra ti!
Boa sorte!
Esse conto tem o mérito de apresentar um crescente até certo ápice, já no final. E também por deixar determinadas ações subentendidas.
Um texto que já nasce datado (todos são, eu sei) ao pressupor do leitor o conhecimento de que ‘app’ signifique ‘aplicativo’.
Não entendi o título. O que quer dizer Gramacho?
Quanto ao tema, o ‘contexto brasileiro’ poderia estar melhor explorado com a inclusão de algum elemento nacional de fácil identificação.
Valeu a leitura !
Farei um comentário completo sobre o tema depois, mas como alguém que cresceu ouvindo histórias sobre o césio 137(pois sou de Goiás e a gente estuda sempre sobre o maior acidente radiológico do mundo até então), preciso dizer que não imaginei ele sendo explorado dessa forma. Vou mandar para amigos lerem só para sentirem aquele desconforto meio ruim meio bom que a literatura pode causar quando toca em situações delicadas.
Olá, Leide!
Tudo bem?
Desculpe, mas não entendi o título… Gramacho é algum lugar? E 2100 é o ano?
Bem, primeiramente, o tema é impossível, como já disse em outro conto. E faltou sim brasilidade no conto, podia ser na Índia isso 🤷🏻♀️
Outra coisa, o conto é narrado em primeira pessoa no passado, por um menino de onze anos que fala e pensa como um adulto (menos na parte de lamber o pó 🤦🏻♀️) mas que talvez não sobreviva. Sendo assim, seria melhor narrar ou no presente ou com um narrador onisciente.
De qualquer forma, gostei da ideia do conto. É terrivelmente profético.
Boa sorte no desafio e até mais!
Olá, Leide! “e como não pagar por um celular” parece que faltou um “podíamos”, certo? Não entendi “pensamento de dono”. Algumas incongruências q me chamaram atenção: alguém de onze anos colocaria na língua um pó branco sem saber do q se trata (e sem que o pai, q acompanhava o desmonte, chamasse atenção)? Alguém miserável a ponto de catar restos de porco teria uma casa? (senti falta de entender melhor a condição econômica dessa família) Sobre o tema, senti falta de um contexto mais brasileiro (esse contexto me pareceu o de qqer país onde haja desigualdade, senti falta de alguma particularidade nossa). Achei interessante a crítica à gig economy e à cultura de empreendedorismo.
Pensamento de dono” é como as empresas avaliam os funcionários, colaboradores, hoje em dia.