Estética do horror │ Rangel Santos

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Dizer que Otávio arrastou o corpo ensanguentado de Aurora pelas escadas não é suficiente. Não há artífice do terror que seja capaz transmitir com fidelidade o que ocorreu. Descrever os detalhes, como o primeiro golpe a lhe rasgar a cartilagem da orelha, ou optar pela narração salpicada de adjetivos cruéis trarão apenas imagens debilitadas do que se passou.  A realidade sempre supera qualquer imitação da arte literária.

Aurora foi morta com duas facadas. Sem sinal de luta. O marido foi preso duas horas depois. Confessou. Crime passional. A mulher o traía, e ele tinha vídeos para provar. Esse é o fato. Seria inútil gastar páginas e páginas inventando um sorriso sarcástico na boca do assassino. Também é insuficiente apontar algum brilho de pavor refletido nos olhos da mulher. Tampouco valeria a pena relatar os gritos estridentes abafados pelas mãos criminosas. As imagens descritas não conseguirão representar a intensidade da coisa em si. Como escritor, é em vão que tento imprimir através das palavras o efeito de quem presenciou na cena.

Ah, os tolos alegarão que a arte é o espelho da vida! Se assim o é, coloquemos um espelho côncavo na história e exageremos de modo caricato o evento, a fim de ficcionar a verdade: Otávio parte a noiva em cinco pedaços. O tronco e a cabeça permanecem unidos. Os dois braços e a perna direita descansam no freezer. A canhota assa no forno. O sangue tempera a salada. Jantar servido. Depois de saciado, o homem apanha uma serra e arranca um dos próprios pés. Marina o membro no vinagre e o cozinha em fogo brando. Depois o serve para o tronco-cabeça anestesiado de Aurora.

Frustrante! Essas simples distorções e falsificações do episódio não chegam perto do impacto cruel da realidade. Pode-se, no entanto, apontar que o meu texto pecou pela falta de perspectiva. É seco demais. Utilizemos, então, o ponto de vista da jovem assassinada. Contemplem, leitores, a beleza da seguinte composição:

 Aurora não sente mais nada. Apenas escuta o barulho da serra elétrica friccionando no osso resistente do braço. A jovem tenta manter as pálpebras abertas, mas sabe que logo a anestesia irá derrotá-la. Por isso, crava o olhar no peito suado de Otávio. Observa o seu sangue espirrado procurar caminho entre os pelos do amado. Excita-se por alguns segundos, até que a escuridão do sono lhe toma a consciência. Três horas depois, o cheiro agridoce no forno a desperta. Ela percebe Otávio se aproximando apoiado em muleta. “Experimenta”, ele diz, enquanto pousa a colher em seus lábios entreabertos. A redução de vinho tinto com manteiga, caldo de carne e tomilho mistura-se à saliva da moça e encharca suas papilas gustativas produzindo um sabor quase perfeito. “Falta sal”, ela avisa.

Infelizmente, nada disso ocorreu. É tudo invencionice de mente pouco criativa, recorrendo a imagens abjetas para chocar e prender o leitor. Omite-se para gerar suspense. Abusa-se do acaso para trazer a sensação de imprevisibilidade. Mas tanto o relato frio do jantar canibal quanto a narrativa contada pelo olhar de Aurora não aconteceram. Nem mesmo houve o feminicídio passional descrito no segundo parágrafo. Então, não é conto! A trama é frequentemente construída e destruída. O clímax inexiste. As personagens não se desenvolvem. Do final, não se pode dizer que está concluído ou que está aberto. Na poesia do horror, tudo está fragmentado.

Tema: Metanarração: escrever um conto em que o narrador ou uma das personagens reflita sobre o seu processo de escrita.

20 comentários em “Estética do horror │ Rangel Santos”

  1. Olá,
    Bem, há várias maneiras de avaliar o seu conto. Acho que devo avvaliá-lo utilizando os elementos próprios ao gênero Conto, já que aqui é o clube do conto. E nesse caso, o objetivo fundamental é um só: o impacto estético. E eu achei que isso deixou a desejar aqui. As divagações sobre o processo criativo são interessantes, mas o conjunto da obra acaba por não criar esse impacto, mesmo com a tentativa de fazê-lo através de cenas chocantes. Elas acabam por não chocar, perdem seu vigor. Falta sal. A história, por ter vários desdobramentos, se perde e fica confusa, mesmo entre narrativas alternativas, precisa ter coesão.
    Boa sorte.

  2. Anna Carolina Gomes Toledo

    Me diverti lendo o texto, até imaginei se este mesmo conto não fazia parte do desafio: um conto destrinchando outro conto seria o ápice da autor crítica e a metalinguístico de um escritor estudando a própria escrita. Gostei do resultado, me fez ter vontade de escrever terror e como estão em Outubro, você me lembrar das diferentes facetas que citou para escrever uma cena de assassinato e eventualmente me aproveitar delas.

  3. Fico indeciso sobre como avaliar o seu texto, pois, dos poucos que li até então, este é o tema que me pareceu mais desafiador. Veja, sua produção parece mais um ensaio, ainda que tente disfarçar inserindo um enredo que, enfim, fica mais de exemplo do que realmente se apresenta como conto. A reflexão ranzinza da autoria também cansa mais rapidamente do que se poderia imaginar, o texto – bem escrito, que fique claro – já soa repetitivo no segundo parágrafo, com uma tônica que volta a aparecer após a última experimentação narrativa do autor. Então este aqui parece se adequar perfeitamente ao tema, mas não tanto ao desafio.

  4. Sim, um metaconto e você, Hyde, desincumbiu-se muito bem da missão. Diria que fez isto com inventividade e ousadia. Texto bem construído, bom domínio da escrita e da narrativa, brinca com as palavras e com os leitores. Parabéns, cumpriu bem seu desígnio. Sucesso no desafio.

  5. CLAUDIA ROBERTA ANGST

    Oi, Hyde, tudo bem?
    O conto aborda com maestria o tema proposto.
    Texto muito bem escrito, colocações construídas com atenção e precisão. Concordar ou não com os argumentos postos não altera a apreciação da leitura.
    Função metalinguística bem empregada no processo de comunicação.
    Não encontrei lapsos de revisão, mas também no meio de tanto terror, sei lá, melhor deixar quieto.
    Parabéns e boa sorte!

  6. Regina Ruth Rincon Caires

    Concordo com a afirmação de que a realidade de um assassinato é infinitamente mais cruel do que qualquer “contar”. É a pura verdade. Mas o desconforto proporcionado pela leitura deste texto é assustador. Nenhum indivíduo quer testemunhar essa realidade, mas isso pode acontecer independente de desejo. Agora, conhecer literatura de terror é escolha. Envolve predileção, prazer. Ainda bem!

    Posso garantir que o seu processo de escrita é totalmente convincente. Caro autor, você tem domínio total sobre ele, é muito habilidoso.

    Quando acabo de ler textos assim, fico impressionada. Tem alguma coisa que me remete para aquelas descrições noticiadas sobre as barbáries do cotidiano. Qualquer coisa como “Chico Picadinho”, “Pedrinho Matador”…

    Seu texto está bem escrito, muito bem escrito. Entendo como uma exposição, uma visão da ficção e da realidade.

    Hyde, parabéns pelo trabalho!

    Boa sorte no desafio!

    Abração…

  7. Buenas, Hyde!

    Gostei. Achei bem interessante, um tantinho ousado, e bem escrito, narrativa e estruturalmente.

    Apesar disso, não concordo com todas as reflexões. Acho que quem já vivenciou determinada situação tem, sim, uma vantagem natural na hora de falar sobre o assunto. Mas nem todas as pessoas sabem se comunicar. E um empata pode, sim, descrever uma situação que nunca vivenciou como se tivesse vivido. Acho que a arte tem uma limitação natural, assim como a própria realidade. Existem coisas que existem apenas na arte e outras na realidade.

    Não sei bem se é um conto: parece ser um ensaio que se utiliza de personagens para fortalecer seu ponto de vista. Isso tornaria o conto num não-conto?

    Parabéns pelo texto! E vamos que vamos.

  8. Olá, Hyde. O seu texto deve ter comovido muitos dos leitores. Pelo menos assim espero, porque se os leitores permanecerem impassíveis ao relato é porque têm instintos tão psicopatas como os que são aqui descritos. Brilhantemente descritos, devo dizer. Quando li a frase “Como escritor, é em vão que tento imprimir através das palavras o efeito de quem presenciou na cena.”, esperava que a narrativa tomasse um rumo mais brando, mas logo a seguir vem uma tempestade de gore visceral e implacável. Em termos de linguagem, acredito ter encontrado um conterrâneo meu aqui de Portugal. Suspeito mesmo que da mesma cidade, mas o tempo dirá – quando cair o pano do anonimato a verdade virá ao de cima.

  9. jowilton amaral da costa jowilton

    O texto relata um assassinato pela perspectiva de um narrador metalinguístico. A escrita é muito boa, prende a atenção e flui sem entraves. O tema foi explorado de forma excelente. A vida é sempre mais cruel que qualquer ficção. e, realmente, não achei que se enquadra no formato de conto,. Mas, gostei assim mesmo. Boa sorte no desafio

  10. Oi Hyde.

    Gostei da sua escrita e da maneira como as histórias foram desenvolvidas: são bem desenvolvidas e prendem a atenção. Os pensamentos de um autor frustrado consigo mesmo, parece.

    Porém, me incomodou o fato de nada ter acontecido no final. Entendo que o tema foi atendido, mas o fato de ter sido tudo mera elocubração me fez sentir enganada. Reconheço que é um recurso ousado.

    Boa sorte.
    Kelly

  11. ANTONIO STEGUES BATISTA

    O título é magnifico.
    Espera-se que o tema seja inspiração para a autora escrever algo agradável, didático, descontraído,
    ao contrário, cria uma história onde o ator fictício reflete suas escolhas de escrita e enredo,
    sobre cenas sangrentas de um assassinato.
    Ou seja, quebra todas as regras da decência, ignorando a expectativa dos leitores e leitoras sensíveis.
    Mas o próprio título do conto aponta para o horror, portanto, não é surpresa e até acho legal como Arte Literária.
    O pseudônimo Hyde, álter ego do dr. Jekill, como autor fictício do conto,
    mostra exatamente, a feiura e crueldade de Hyde, de quem não se pode esperar receber flores. Gostei.

  12. Hyde, boa tarde,

    Aqui temos um conto centrado no dilema da rivalidade arte vs ficção.

    E há um pegadinha no texto, pois de algum modo o autor faz parecer que o primeiro relato é real (dentro do texto). E que ele tenta transmitir o mesmo asco desse evento real nos outros dois relatos forjados por ele. No final descobrimos que esse relato também é fictício. O leitor foi enganado. É uma brincadeira interessante sobre o limite real vs ficcional, em que o narrador prega uma peça no leitor.

    Gostei das imagens exploradas, a angústia de um escritor ao tentar repassar a intensidade de uma ideia ou um sentimento através de um relato. Aí ele escreve, reescreve e reescreve de novo só para se frustrar por crer ser a arte literária incapaz de trazer o mesmo impacto da realidade.
    A reflexão faz valer a pena para qualquer escritor. Há a presença de um ironia sobre os excessos com a finalidade de simplesmente chocar. É uma escrita rápida e potente.

    Por fim, achei engraçado, pois acredito que toda realidade é em parte ficção. Não se é possível dar um relato objetivo e preciso de qualquer evento. Nisso, a literatura é melhor. Pois engloba só transcreve aquilo que é real. O que não está escrito ou sugerido não existe. Se digo “João adentrou um salão”. Na literatura foi exatamente isso o que ocorreu.

    Parabéns e boa sorte!

  13. Ana Luísa M. Teixeira

    Oi Hyde! Tudo bem?
    Adorei o pseudônimo e o título!

    O texto está super bem escrito! Achei bem elaborado e envolvente demais! Li sempre primeiro qual é o tema antes de passar para o texto, e confesso que imaginava um outro desenvolvimento do seu texto, mas fui positivamente surpreendida! Apesar de não suprir as minhas expectativas o tema está super dentro e muito bem!
    Não encontrei nenhum erro ortográfico, de português, de estética, de digitação, nada! A revisão tá super em dia!

    Parabéns pelo texto e boa sorte!

  14. Um texto bem escrito, pensado, elaborado.
    A leitura flui bem, prende o leitor.
    Eu substituiria o termo ‘invencionice’ por ‘invenção’ mesmo. Apenas uma sugestão, porque me soou estranho no padrão do texto.
    No primeiro parágrafo a frase: ‘A realidade sempre supera qualquer imitação da arte literária’. Essa relação/ideia de superação realidade x arte me pareceu clichê.
    Parabéns!

  15. Olá, Hyde!

    Esse é um dos melhores textos desse certame. Você cumpriu muito bem com o desafio proposto em escrever um conto metalinguístico e trouxe um texto de horror, um tanto macabro. Todos os trechos fazem sentido, são coerentes e não há nenhuma parte solta que necessite explicação, realmente você escreve muito bem. Não encontrei nenhum desvio gramatical e, se tiver, não atrapalhou a minha leitura.

    Sucesso pra ti!

    Boa sorte!

    1. Oi, Victor!

      Acredita que meu pseudônimo até 5 min antes de enviar seria Victor Frankenstein? Era uma maneira de brincar com essa tentativa do narrador-escritor de juntar os fragmentos do texto dos corpos como o cientista do livro de Mary Shelley. Depois troquei.

      Que bom que gostou do conto o tema era realmente rico, mas me deu receio de 700 palavras serem pouco, mas parece que deu certo. Obrigado!

  16. Olá, Mr Hyde! (Amei o pseudônimo)
    Tudo bem?
    Que tema legal! Ainda bem que não peguei!
    Você fez um ótimo trabalho. Gostei. E o conto já é o próprio comentário que costumamos deixar então não há muito mais o que dizer.
    A vida e a arte são assim mesmo, não há o que fazer. Quem conta um conto aumenta um ponto. E mesmo que aumentassemos mil pontos, ainda não seria tão real quanto a realidade. Desculpe, estou apenas divagando…
    Boa sorte no desafio!
    Até mais!

    1. Oi, Priscila!

      Eu adorei o tema também! Sobre o dilema vida e arte, tem dias que eu acho que a arte pode ser mais intensa que a realidade, tem vezes que acho que é o contrário kkkkk

      De qualquer modo, acho que todo escritor precisa ter isso em mente ao escrever.

      Grato demais pelo comentário.

  17. Olá, Hyde! Ritmo bom, com frases curtas e longas se alternando. Um delírio metalinguístico temperado com tomilho, que poderia ter sido um título menos explicativo. Mas considerando a metalinguagem, faz até sentido um título autoexplicativo. A ironia do final pontua bem a qualidade do texto.

    1. Olá, Pablo,

      Primeiro estou curtindo muito seus comentários em geral e estava aguardando chegar no meu texto.

      Pois é, sobre o título, eu queria brincar com alguma coisa entre título de ensaio e título antiquado de conto. Sabe aqueles livros de terror que a gente compra e vem com um textão acadêmico antes do livro? kkkk Mas, entendi bem, o seu ponto de vista.

      Obrigado pela avaliação!

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