
Cogitei deixar acontecer. Ele tinha mandado que lhe desse as costas e foi assim que descemos a ladeira até à beira do rio. A água era turva e espumante, mas se eu fechasse os olhos restaria o chiado tranquilo e constante da correnteza. Eu provavelmente sequer ouviria o estouro que lançaria meus miolos aos ares. Os destroços do meu cérebro avermelhariam aquela água suja e nos meus ouvidos persistiria a calmaria do rio. Foi só um momento de cogitação. O que ocorreu foi que me virei num salto e nossas mãos, as minhas nuas, as dele armadas, encontraram-se. Com um disparo, é primeiro o lampejo da bala que vemos ou o estouro que escutamos? É assim com os raios. Ele não teve tempo de pressionar o gatilho, por pouco os nossos olhos ainda registraram o tracejado luminoso que se desenhou entre nós, bem onde as nossas mãos se encontravam em disputa. Quem poderia imaginar? Cada um já voava para um lado quando o trovão explodiu em nossos ouvidos.
Despertei num salto. E depois outro. Espasmos. Eu me desdobrava no chão aos sacolejos, a eletricidade tocava a música, meu corpo dançava e eu não tinha vez. Nessa coreografia teve hora de meu rosto virar pro chão, o pescoço esticar, o torso tensionar e empurrar minha cara contra o solo. A bocarra aberta para um grito que tinha intenção, mas não tinha voz. Comi areia, achei que sufocaria. Cada vez mais intenso, mas ainda mais fraco do que o cheiro de terra molhada, havia um odor de queimado, o ardor se fazia sentir por ondas em meus músculos, corria a minha pele. Com a primeira mão sobre a qual recuperei controle, apoiei-me para fora da minha asfixia de barro. Respirar não se tornou mais fácil pela eliminação dessa obstrução. Na minha involuntária dança espasmódica, ajoelhei. O odor acre da combustão estava mais forte. Carne queimada, minha carne. O incêndio me fazia de combustível. Nos meus ouvidos ainda restava a explosão daquele arauto de tempestade, mas, suave, distingui o rio correndo atrás de mim.
Quis me levantar e, quando os joelhos me obedeceram, impulsionei-me para frente, em direção ao meu pretenso assassino. Ignorei as águas que lavariam o fogo que me consumia. Caído alguns metros mais à frente, o idiota tinha mais dificuldade do que eu, sequer saíra do chão, dançava a mesma agonia que eu experimentava. Não tivesse a minha boca entortado, eu riria. Caí sem jeito sobre ele, retorci um sorriso demoníaco quando senti forças o bastante para fechar minhas duas mãos em torno de seu pescoço. Duas garras enluvadas em fogo o agarraram, finas colunas de fumaça serpentearam onde minhas mãos queimavam sua pele já acalorada, os olhos dele rodaram angustiados, encontraram os meus próprios olhos, acesos em minha incandescente máscara de chamas. O braço dele se agitava inutilmente, o tambor do revólver havia explodido, o gatilho e o punho se fundiram como uma manopla entre os seus dedos. Gargalhei fumaça. Antes de meus olhos derreterem, vi os dele perderem o brilho. Queimei assim, meus lábios enegrecidos e enrugados até arregaçarem, mostrando os dentes cravados em gengivas chamuscadas, num sorriso obsceno, num gracejo de vingança.
Por alguns instantes, poder-se-ia ouvir o sopro do fogo, depois um baque seco, curto. Por todo o tempo, ininterrupto, o chio da água passando.
Tema: Violência
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O conto narra uma tentativa de assassinato que acaba que é interrompida pela queda de uma raio em cima das duas personagens. O enredo é muito bom e muito bem conduzido. Boa ambientação e descrições que geram ótimas imagens. A narrativa também é muito bem feita, prende a atenção e angustia. O tema foi executado com sucesso. Boa sorte no desafio.
Nossa, a parte do sons no meio da descrição é sensacional. Descrever decals né ação podem cair no trash ou apelativo na tentativa de soar visual, mas você equilibrou bem entre narrar o acontecimento, intenções e o ambiente em si para não ficar apenas descrições jornalísticas de uma luta. Senti falta de contexto, mas com o tempo e o tem, foi um resultado excelente!
Olá, Prometeu!
Eita, Prometeu! Tu prometeste e entregaste rs. Saindo desse trocadilho infame e falando um pouco do seu texto. Eu, particularmente, gostei do conto, você realmente abordou bem o tema de violência e isso está explícito nas imagens fortes apresentadas na história. Consegui entender o que está passando pela cabeça da vítima perante o assassino, embora alguns trechos estejam abstratos por causa do uso de figuras de linguagem. De qualquer forma, está muito bem escrito e você demonstra bastante domínio da língua portuguesa, pois não percebi desvios gramaticais que atrapalhassem a minha experiência como leitor e fluidez da leitura. Só fiquei pensativo em alguns momentos rs.
Sucesso para ti!
Boa sorte!
Olá,
Um texto extremamente violento, atende perfeitamente ao tema. Um pouco conveniente o raio cair bem sobre os personagens, mas de resto, está perfeito. O autor demonstra um pleno domínio da língua portuguesa e uma escrita muito habilidosa. A prosa quase vira poesia se tão Estética. Muito bom.
Boa sorte!
ei, Prometeu, puxa, que conto forte. Violência explícita… mas era exatamente a violência o tema que você deveria desenvolver. Bem, cumpriu com maestria a missão. Algumas imagens ficaram bonitas em meio ao ambiente degradado pela cena na beira do rio. Parabéns pela sua narrativa. Você tem um bom domínio da nossa língua. Aliás, não observei nenhum erro na sua escrita. Sucesso no nosso desafio.
Buenas, Prometeu.
É um dos contos que mais me impressionou, até aqui. Quem já viveu uma situação de vida e morta sabe como é a vontade descrita no início. De desistir, de aceitar, deixar tudo acabar rápido. Muitos cedem. Mas, quando o ímpeto de viver é maior, desperta um lado demoníaco da pessoa que, muitas vezes, nem sabe de onde vem. Tudo fica nebuloso e, no final, a pessoa fica sem acreditar em si mesmo. O ser humano é capaz de tudo, principalmente pra sobreviver.
Muito bem escrito, caótico e violento, como o tema pede.
Parabéns pelo texto! Vamos que vamos.
Prometeu e cumpriu. Poderia ser esta a conclusão a que chegamos quando vemos o tema do texto: violência. Nu e visceral. Há um misto de sensações. O conflito entre dois homens, levado ao exagero pela intervenção das forças da natureza, como que a mostrar que não passamos de seres minúsculos e irrelevantes. Encontrei alguns problemas mínimos no seu texto, mas nada que impeça a sua força.
Oi, Prometeu, tudo bem?
O conto abordou com muita elegância o tema proposto.
O texto está muito bem escrito, com passagens bonitas mesmo descrevendo cenas tão violentas. Adorei o “gargalhei fumaça”, curto muito essas construções “diferentonas” de frases.
Não encontrei falhas de revisão.
Entendi exatamente o que aconteceu com os personagens? Não, mas isso não tirou o impacto da leitura. Talvez até faça parte da experiência viver esse misto de confusão e encantamento.
Parabéns pela participação e boa sorte.
Olá, Prometeu!
Nossa… Muito intenso o seu conto! Você entregou muita violência realmente! O conto é um retrato de um momento, não sabemos por que um queria matar o outro, nem como chegaram naquela situação, mas isso não faz falta. Você soube perfeitamente fazer o conto completo com tão poucas palavras. Parabéns!
Sobre o enredo, gostei bastante, mesmo parecendo inverossímil que alguém escolhesse a ânsia assassina da vingança do que aliviar a dor no rio. 🤷🏻♀️
Boa sorte no desafio e até mais!
Oi Prometeu,
A tensão presente na história nos prende do início ao fim! Parabéns!
Eu também fiquei na dúvida o que causou o fogo no corpo do rapaz… um tiro ou um raio?
Sucesso com o conto!
Oi Prometeu.
Você prometeu violência e você entregou. Ponto.
Gostei muito do seu conto. Acho que foi o que melhor atendeu o tema. Focou em um momento de violência pura e não se desviou um milímetro sequer.
Sabemos pouco do que levou àquela sequencia de acontecimentos, ou quem são os personagens. Só temos um recorte muito cru da violência.
A maneira como a cena foi narrada foi muito hábil, uma linguagem rica e poetica na medida.
Parabens e boa sorte.
Kelly
Olá Prometeu!
Tudo bem?
Gostei muito do texto! Parabéns!
O tema foi excepcionalmente abordado e todo o texto está muito bem escrito.
A tensão que você conseguiu construir é palpável. Muito bem elaborado e descrito. Consegui me colocar na cena.
Apesar de haver passagens nas quais poderia se dizer que são um tanto quanto gráficas, achei que a abordagem do tema foi feita de maneira sutil, num bom sentido, de maneira comedida e clara quero dizer.
Boa sorte!
Olá, Prometeu! Por falar em prometeu, o título do conto prometeu a violência do tema. “Meus miolos” me pareceu um pouco clichê de tradução de dublagem de enlatado estadunidense, mas também não sei se achei outra palavra para o caso.
“por pouco os nossos olhos ainda registraram…” não fez sentido. Me parece que seria “por pouco os nossos olhos não registraram…”
A escrita me pareceu bem imagética (gostei de “gargalhei fumaça” – me remeteu ao longa do Coringa), mas acho que poderia ser mais simples, menos empolada (rolou até mesóclise, o pseudônimo podia ser Temer). O conto me pareceu um slow motion de uma cena de filme de ação, por ser ater muito em descrições, talvez tenha sentido falta de mais ritmo e acontecimentos. Fiquei um pouco em dúvida se a água suja de um rio se tornaria mais vermelha. Não me empolgou, mas está escrito de forma correta e com boas passagens.
Puxa, quanta tensão, Prometeu!
O tema da violência foi explorado muitíssimo bem. A escrita cumpre bem o papel de nos fazer mergulhar nas chamas, no conflito, na incerteza.
Não parar a história para explicar o motivo de estarem ali é um grande acerto. E você não deixou pistas nenhuma, quis nos obrigar a viver o conflito em sua total intensidade. Não há respiro, mesmo a imagem das águas possivelmente salvadoras, não causam alento, pois podem ser letais. Enfim, você deu o nome! Parabéns!
Uma frase me deixou em dúvida: ” Queimei assim, meus lábios enegrecidos e enrugados até arregaçarem, mostrando os dentes cravados em gengivas chamuscadas, num sorriso obsceno, num gracejo de vingança”. Estaria faltando uma vírgula após “queimei”? Do modo que está, a mim deu a ideia de que ele iria relatar como queimou, mas a frase só mostra mesmo efeito da queimada.
O conto relata a luta de dois homens pela posse de um revólver, a explosão (?)
do tambor e o caos sangrento entre vítima e assassino. O texto está bem escrito, as frases, as descrições.
O enredo corresponde ao tema, mas por qual motivo um queria matar o outro?
Quem sobreviveu? Parece que a história tem meio, mas não tem começo nem fim.
O autor preferiu descrever uma ação de violência e conseguiu.
Conto muito bem escrito. Um estado de tensão constante está colocado. Desde o início, tem cena e ação, o leitor fica preso ao ritmo.
Reli o primeiro parágrafo. Só não entendi o que causou fogo ao corpo do narrador: um tiro ou um raio?
Também não entendi essa imagem: “mais fraco do que o cheiro de terra molhada”.
Além do bom ritmo, o conto traz um vocabulário interessante, desse modo, eu substituiria ou eliminaria a exrpessão ‘o idiota’.
Parabéns !
O texto cumpre brilhante e assustadoramente o tema escolhido pelo autor.
O que mais me encantou nesta narrativa, foi a descrição cuidadosa. É de uma perfeição tamanha que todo leitor é transportado para a cena do crime. E não falo apenas da descrição objetiva, aquela que coloca o leitor na barranca do rio vendo a água turva e espumante, ouvindo o estouro do tambor do revólver, sentindo o cheiro de pólvora, acompanhando o esforço do personagem/narrador rastejando, entre espasmos, para dar cabo do inimigo. Não. Falo, também, do contar subjetivo, da narração que é feita e moldada pela carga de pensamento que acomete o personagem. Seu pavor, seu medo, sua dor, sua raiva, sua vontade. É bonito de ver como tudo isso é levado ao leitor. Quem não esperou o tiro na nuca? Quem não sentiu o cheiro do barro a sufocar o personagem? Quem não viu as mãos estouradas e não visualizou a boca torta que não permitia o riso do ferido? Quem não se afligiu com a dor das queimaduras, com a asfixia do morto-vivo? Quem não sentiu o cheiro da carne queimando? Contar com perfeição é isso. É construir um retrato verbal da história, e, numa magia que só a arte realiza, colocá-lo na mente do leitor. E a delícia da leitura é exatamente assimilar esse retrato e construir a imagem mental, aquela que faz o leitor “viajar” por vários mundos. Bendita literatura!
No tempo cronológico, a cena durou quanto? Um minuto? Dois minutos? E quanto durou o envolvimento do leitor com o texto? Interessante observar isso.
Interessante, também, é que numa narrativa tão violenta, é possível observar a manifestação poética que o autor coloca:
“… mas se eu fechasse os olhos restaria o chiado tranquilo e constante da correnteza.”
“… nos meus ouvidos persistiria a calmaria do rio.”
“Por todo o tempo, ininterrupto, o chio da água passando.”
Quanto à escrita, só estranhei o tempo verbal na seguinte frase:
“Com um disparo, é primeiro o lampejo da bala que vemos ou o estouro que escutamos?”
Parabéns, Prometeu! Você é fogo!
Boa sorte no desafio!
Abração…