A mulher intrigante │ Fernando Cyrino

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A chuva fina tornava ainda mais fria a noite. Aumentava a preguiça de sair, mas a lembrança de Santinha, a mulher intrigante sob o viaduto, a animou. Além da sopa levariam também uns agasalhos. Passou pela cozinha, encheu a xícara de café e foi se assentar com a mãe assistindo novela, mas não houve tempo. O interfone tocou. A turma tinha chegado. Cuidando para não se queimar, bebeu rapidamente o café, beijou-a e partiu ao encontro da miséria.

A chuva apertou e foi difícil carregar as coisas até os lugares onde os mendigos, mais que se proteger, se escondiam da sociedade. Na roda de conversa, enquanto se deliciavam aquecendo o corpo com o chocolate quente, não viu a mulher sempre a esperá-la com o sorriso banguela e os olhos brilhantes.

– Passou mal e depois de dois dias com a gente pedindo socorro, ontem mandaram a ambulância para levá-la ao hospital.

Indignados, me contaram que estava desacordada e os padioleiros insinuavam que aquilo fosse cachaça. Ninguém tinha ideia do lugar para onde a tinham levado e disseram que a médica, preenchendo a ficha, lhes perguntara o seu nome. Só sabiam ser Santinha e que depois de estar com eles, desde bem antes da pandemia, nunca a viram cheirar, fumar pedra e muito menos beber pinga.

Voltou preocupada para casa. Feriado no dia seguinte e aproveitou para visitar Santinha. Ligou para os bombeiros e lhe informaram que doentes e feridos recolhidos nas ruas eram encaminhados à Santa Casa. Na recepção perguntou por uma moradora de rua atendida sob o Viaduto Central há dois dias. A atendente em menos de um minuto lhe respondeu que havia uma indigente de identidade desconhecida e apelido Santinha. Só podia ser ela. Renata se animou pedindo para vê-la.

– Está na UTI e não é horário de visitas, mas vá até lá, 3º andar, Baia 12 e se alguém lhe perguntar, diga que sua entrada foi liberada para que pudesse identificar a paciente.

Como se fosse possível, quem sabe pela palidez aumentada com a limpeza feita no corpo, Santinha parecia ainda mais magra. Tão imóvel que chegou a duvidar que estivesse viva. A enfermeira lhe disse que estava praticamente em coma.

– Ei Santinha, sou eu a Renata.

Abriu os olhos esboçando o sorriso banguela.

– Viva, a Baia 12 acordou.            

Disse alto uma das cuidadoras. Santinha fez sinal para que chegasse mais perto e, sussurrante, começou a falar.

– Rogo a Deus que não tenha me enganado. Acho que Ele a trouxe aqui para eu prestar contas com o passado. Desde que a vi e ouvi seu nome, o coração me dizia que somos ligadas.

 Assustada, Renata lhe contou que também tinha ficado impressionada com ela.

– Como podia estar acontecendo aquilo se nunca havíamos nos visto?

 – Sou Maria das Graças Vicentino.

–  Jesus do Céu, temos o mesmo sobrenome.

– Isto só comprova o que meu coração sabia desde que a vi. Renata, minha filha! Agora posso morrer em paz.

– Isto tudo é tão absurdo, louco e confuso.

E Santinha lhe explicou que era viciada em crack e que não criaria a filha naquela promiscuidade em que vivia. Levou-a então à irmã para que cuidasse da filha até que, curada do vício, pudesse criá-la. A questão era que a cada dia se afundava mais na lama. Desistiu, pedindo para alguém ligar informando que tinha morrido atropelada. As últimas palavras quase não podiam ser escutadas. Renata, aos prantos, praticamente encostara o ouvido à boca sem dentes da mãe. O arfar do peito diminuía rapidamente.

O aviso estridente e o piscar das luzes dos aparelhos alertavam para problemas sérios na Baia 12.  Em um minuto o leito tinha desaparecido em meio a tanta gente em volta. Renata recuou uns passos e, na confusão da cena, se esqueceram dela. Foram só uns minutos? Demorou muito tempo? Não saberia dizer. Aos poucos o enxame em volta de Santinha foi se desfazendo. A última a sair lhe cobriu o rosto. Foi então que se deram conta da sua presença.

– Você não podia estar aqui. Ela era sua conhecida?

– Ela era muito, muito mais do que isto. Era minha mãe.

Tema: Cotidiano

18 comentários em “A mulher intrigante │ Fernando Cyrino”

  1. jowilton amaral da costa

    O conto narra a história de Renata que ajuda pessoas moradoras de rua e acaba descobrindo que uma das moradoras é a sua mãe biológica. O enredo é regulae e tem uma boa reviravolta, apesar de eu não achar nada cotidiano descobrir a mãe de uma forma dessas. Por, isso acho que o tema ficou meio lá e meio cá. A narrativa é boa, mas pode ser melhorada. A historia não me impactou muito. Boa sorte no desafio.

  2. Anna Carolina Gomes Toledo

    Gostei do conto meio que brincar com a ideia de destino e, neste caso, sinto que a narração terceira pessoa traria certas vantagens a história. O tom mais dramático e inverossímil no final me incomoda um pouco, porque veio do nada e parece fugir do cotidiano (li o tema antes do conto, talvez esse foi meu erro), mas com a pegada mais determinista do destino, da para entender essa decisão e f
    Olhar com mais carinho para a história. Gosto do final e do plot twist. Se houvesse mais tempo no desfecho e menos na introdução, provavelmente teria a amado o texto.

  3. Há um impacto maior quando se descobre o tema, pois parece aludir à tragédia que a perdição quase completa de vidas é mesmo um fato cotidiano, ao passo que, em uma nota mais esperançosa, a redenção também pode pertencer ao cotidiano. Dessa maneira, o uso do tema foi bastante inteligente e criativo, esse último aspecto algo que não posso atribuir a história, clichê quase melodramático. Por isso, tomo como um conto equilibrado dentro do certame, firme em sua mensagem, mas não tão impactante na maneira como nos é entregue.

  4. Olá,
    Bem, esse tema é bem complicado. Não sei se o conto está bem adequado a ele. Mas de qualquer forma, isso não tira a qualidade da escrita. Realmente bem dramática e impactante. Acho que a apresentação dos personagens no início poderia ser um pouco mais clara, fica um pouco confuso saber a identidade da protagonista.
    Boa sorte!

  5. Buenas, Maria.

    Vou engatar as reflexões do Viegas: o que é o cotidiano? Uma parcela da vida? Algo que é comum, banal? Ou simplesmente aquilo que acontece diariamente? O cotidiano parece estar atrelado aos afazeres diários. Aquela breve conversa que temos com o vizinho antes de ir trabalhar, o passeio de ônibus com as mesmas pessoas no trajeto casa-trabalho/trabalho-casa, o ritual que fazemos quando chegamos depois de um longo dia de trabalho. Reparou que lembrei o trabalho nas três ocasiões? Isso é o cotidiano. Algo que está sempre presente. E não é todo dia que você encontra sua suposta falecida mãe no leito de morte. Este é o grande problema do conto quando se trata do tema escolhido. Não é uma história cotidiana. Atrelar todos os acontecimentos da vida ao cotidiano mata o propósito da rotina. Agora, se o conto fosse narrado do ponto de vista de um terceiro, que sempre vivencia isto nos trabalhos voluntários, estaria bem mais próximo do tema. Não é interessante como um pequeno detalhe muda todo o aspecto da abordagem do tema? Mas não se preocupe: isso não tem um peso tão grande na minha avaliação, hehe.

    O conto também precisa de um cuidado maior na narrativa. Por vezes, ela é apressada e apenas relata os fatos. Essa história é emocional, precisa que cative o leitor para funcionar direitinho. Contando a história, você cria naturalmente uma barreira para o leitor. Ele não se aproxima tanto dos personagens. Quando a história é mostrada, essa barreira é dissipada e o leitor tem maior imersão na leitura. Talvez, este conto precise de maior espaço pra alcançar seu verdadeiro potencial.

    Mas é isso. Parabéns pelo texto. E vamos que vamos!

  6. Olá, Maria!

    P#@%#, que tema é esse? Pode falar palavrão nos comentários? Já foi, sorry! Mas, sério. Como escrever cotidiano em 700 palavras? O que é cotidiano? O que é a vida? O que é essa crise existencial que eu acabei de criar? Eu achei esse tema muito difícil, pois não acredito que alguém consiga caracterizar o cotidiano, mas, ao ler o seu conto eu realmente senti que você precisava de mais palavras para que a história ficasse completa. Não te julgo, o tema estava complicado mesmo, esse era o desafio.

    A escrita está boa, claro que tem alguns desvios gramaticais e carece revisão, mas vejo potencial. Uma coisa que me incomodou muito foi não ter as informações dos personagens no início da história, a Renata, por exemplo, descobri o nome só no terceiro parágrafo e lá estava eu no começo do conto tentando entender quem estava falando comigo. A história é bonita, mas senti que precisa de um pouco mais de aprofundamento, ficou raso, com diálogos apressados e um tanto confuso (a falta de caracterização dos personagens ajudou nessa confusão, mas também pode ser a tal crise existencial colocada no começo desse comentário. Eu já estava confuso antes mesmo de escrever). Enfim.

    Sucesso pra ti!

    Boa sorte!

  7. CLAUDIA ROBERTA ANGST

    Oi, Maria das Graças, tudo bem?
    O conto aborda uma cena do cotidiano, mas uma cena muito especial. O reencontro de mãe e filha.
    Não sei por que, mas senti que o final ficou um pouco apressado, talvez pudesse enxugar o começo da narrativa e dar um toque a mais de suspense da metade para o desfecho com a revelação.
    Pouca coisa a acertar em termos de revisão.
    A narrativa prende a atenção e queremos saber quem é a Santinha.
    Parabéns pela participação de boa sorte.

  8. Olá. O seu conto lembrou-me de um caso parecido. A vida pode ser cruel. No caso do seu conto, creio ter sido traída pelo tamanho máximo do desafio, porque senti faltarem excertos. Há alguma precipitação em algumas passagens. Um exemplo: ela pergunta pela Santinha, e na frase seguinte já está a vê-la. Falta uma pausa que permita ao leitor situar-se. A nível linguístico, nada a apontar. O impacto é grande, mas poderia ser gerido de forma menos previsível.

  9. Oi Maria das Graças.

    Um conto bonito, interessante e muito bem escrito. Gostei da conicidencia de Renata encontrar sua mãe em uma cidade grande e da história de conciliação e redenção.

    Um pequeno deslize me deixou confusa. Em “Indignados, me contaram…” a narrativa parece ser em primeira pessoa, o que me fez pensar quem seria o narrador. Por fim, concluí que o “me” está errado, deveria ser “lhe”, o que manteria a narrativa em terceira pessoa.

    Só não sei se atendeu ao tema. Apesar do trabalho voluntário e da assistência às pessoas em situação de rua serem parte do cotidiano, o encontro acidental entre mãe e filha separadas há muito é um evento nada cotidiano e, na minha opinião, o ponto central do conto.

    De qualquer forma, foi uma leitura muito agradável.

    Parabéns e boa sorte.
    Kelly

  10. Ana Luísa M. Teixeira

    Olá Maria!
    Tudo bem?

    Achei seu texto muito sensível e bem escrito. Tive a sensação no entanto de que falta algo (mas, levando em consideração que o texto só poderia ter até 700 caracteres, é compreensível).
    O tema foi abordado, mas você poderia ter se aprofundado ainda mais em questões típicas do cotidiano, coisas mais corriqueiras, como uma cena por exemplo onde uma das personagens se suja com café (um exemplo bem tosco, mas só para que você entenda o que eu quero dizer). Mesmo tendo essa ideia eu gostei bastante da abordagem do tema sobre pessoas que se voluntariam para ajudar moradores de rua. Uma parte que achei muito sensível e bem escrita foi particularmente quando diz que a personagem está indo “até os lugares onde os mendigos, mais que se proteger, se escondiam da sociedade.”

    Parabéns pelo texto e boa sorte!

  11. Olá, Maria das Graças Vicentino!

    Primeiramente que tema importante de ser abordado. O voluntariado, as dificuldades das pessoas em condição de rua, particularmente pós pandemia, o descaso público e etc. O seu é o único texto que se aventurou a ir nessa direção de apresentar essas narrativas marginalizadas. Parabéns! Achei isso maravilhoso. Refrescou e contribuiu muito para o desafio.
    A primeira metade da história está muito bonita. Há alguns pontos da escrita que precisariam ser melhorados, mas gostei muito. A segunda parte, quando a Renata vai para o hospital e a revelação do vínculo materno, me pareceu corrida. Alguém disse ser pela limite exigido no desafio. Em partes concordo. Mas poderia ter economizado em passagens que não acrescentaram tanto, como dos padioleiros deduzindo que era cachaça, ou o retorno da Renata para casa antes de finalmente procurar pelos bombeiros e ir para a Santa Casa, ou dos mendigos explicando que ela não usava mais drogas desde o fim da pandemia. Todas essas coisas contribuiriam em uma narrativa maior, mas aqui, você precisou optar entre desenhar todas essas imagens ou explorar mais o mistério do encontro entre mãe e filha.
    Sobre a escrita, em alguns momentos trocou o “isso” por “isto”. Na fala, a gente costuma fazer o inverso.

    Sobre a questão da adequação do tema, não me pareceu que o evento principal do conto pudesse ser incluído como cotidiano. Mesmo na realidade dos voluntários, descobrir que a mãe tida como morta, não só está viva, como está bem próxima de você, é algo bem raro e que não se repete.

    Desejo sorte no desafio e que sua escrita inspire outros autores a se permitirem ser inspirados e atravessados pelas histórias marginais. Parabéns por abrir essa porta.

  12. ANTONIO STEGUES BATISTA

    O título parece um romance policial de Agatha Christie.
    A escrita é simples, algumas frases precisam ser melhor construídas,
    com palavras mais agradáveis que dariam melhor sonoridade à frase,
    não esquecendo dos sinônimos, que às vezes fica melhor no conjunto.
    O enredo merece uma história mais longa.
    Acho que o mote não combinou com o tema,
    pois não é todo dia que uma mãe encontra sua filha perdida, né?

  13. Olá, Maria das Graças!
    Tudo bem?
    Gostei do conto! A mensagem dele é linda, de perdão, reconciliação, de unidade de alma.
    O conto vai mais para o drama do que para o cotidiano, mas nada que faça perder pontos por estar fora do tema.
    Como já foi apontado, um maior cuidado com a revisão deixaria o conto ainda melhor.
    Boa sorte no desafio e até mais!

  14. Regina Ruth Rincon Caires

    O texto apresenta um enredo muito interessante, o encontro da mãe em meio do trabalho voluntário exigiu muita criatividade. E esta narrativa, sem a limitação de 700 palavras, poderá se tornar um conto magnífico. A história requer uma criação mais alongada, mais lenta, contada sem a preocupação de “respeitar o limite de palavras”. A trama é muito rica, emocionante. Há um conteúdo muito precioso.

    O autor explorou o tema “cotidiano”. Para a maioria dos leitores, o enredo não se encaixa no cotidiano. Mas para pessoas que fazem o trabalho voluntário de cuidar dos moradores de rua, o enredo faz todo o sentido. O trabalho voluntário, para elas, faz parte do cotidiano, é costumeiro. Aqui, no desafio, o encaixe no tema faz parte da avaliação, é justo. Está no regulamento. Mas isso não diminui a qualidade do enredo criado pelo autor. Este texto, revisado, com cuidadoso ajuste, será um conto maravilhoso.

    Parabéns, Maria das Graças Vicentino!

    Boa sorte no desafio!

    Abração…

  15. Vou comentar em alguns tópicos.
    O conto tem um tom de romance espírita, ‘o coração me dizia que somos ligadas’.
    O nome ‘Santinha’ é simpático para a personagem.
    A identificação da personagem ‘Renata’ demora a aparecer.
    ‘Sorriso banguela’ aparece duas vezes. No final, ‘boca sem dentes’. Parece desnecessária essa repetição.
    Por fim, estou em dúvida se o conto tem como tema ‘Cotidiano’.
    Valeu a leitura!

  16. Vou fazer alguns comentários pontuais.
    O conto tem um tom de romance espírita, “o coração me dizia que somos ligadas”.
    O nome ‘Santinha’ é simpático para uma personagem.
    A identificação da personagem ‘Renata’ custa a acontecer.
    A ideia de ‘sorriso banguela’ aparece duas vezes, parece desnecessário. Depois reforça com ‘boca sem dentes’.
    Tem certa lição moral ao mencionar a ‘promiscuidade’.
    Por fim, tenho dúvidas se o conto trata do tema ‘Cotidiano’.
    Valeu a leitura!

  17. Olá, Maria das Graças! Em “e muito menos beber pinga” me pareceu que a “muito menos” não seria a melhor expressão a ser adotada, e sim “nem sequer”, uma vez que se imaginarmos uma gradação, o ato de beber pinga é menos significativo que cheirar ou fumar crack, por exemplo. Em “perguntou por uma moradora de rua atendida sob o Viaduto Central há dois dias” o certo seria “havia dois dias” (ou “dois dias antes”), já que a ação se passa no passado. Se o nome da personagem (Renata) tivesse aparecido antes, nos habituaríamos melhor. Em vez de “3º andar, Baia 12 e se alguém lhe perguntar”, “3º andar, baia 12. Se alguém lhe perguntar…”. Em vez de ” Viva, a Baia 12 acordou.
    Disse alto uma das cuidadoras.”, ” Viva! A baia 12 acordou – disse alto uma das cuidadoras.” Não entendi a passagem “– Como podia estar acontecendo aquilo se nunca havíamos nos visto?”. Parece não fazer parte do diálogo, e sim ser um pensamento de uma narradora em 1a pessoa, mas o conto está narrado em 3a pessoa. O fim do conto assume ares de melodrama e o final me pareceu um pouco piegas. Sobre o tal “enxame de pessoas” em volta de Santinha, me pareceu um pouco inverossímil. Em um hospital, não é habitual que um monte de pessoas fique em torno do paciente, mesmo em casos de gravidade. Um “enxame de pessoas” me pareceu uma imagem que não condiz.

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