
Amor, trabalho e fé │ Victor Viegas
― Dá mais um passo para trás, Adalberto ― falou Cipriano Cachoeira, prefeito da cidade de Quintana. ― Me deixa bem bonito na foto, hein!
Cipriano segurava, com a ponta dos dedos indicador e do meio, o ombro de uma senhora que passava pela inauguração do novo semáforo da rua Columbia. Ele precisava de apenas uma foto com alguém com roupas simples para estampar a primeira página do jornal da cidade e garantir sua reeleição.
― Sorria, minha senhora! Olhe lá para a câmera e sorria.
Ela abriu um pequeno sorriso sem mostrar os dentes. Adalberto, a alguns passos de distância, pressionou a tela do celular e levantou o polegar em seguida, indicando que tinha tirado a foto.
― Prefeito, eu gostaria de pedir pra dar uma olhadinha na iluminação do bairro…
Ela foi interrompida imediatamente.
― Não, não quero saber disso, não. Fala aí com meu assessor que eu tô ocupado agora. ― O prefeito e seu secretário entraram em uma caminhonete e saíram em disparada daquela inauguração.
No dia seguinte, Cipriano estava ansioso para olhar a manchete, até pensava em quais palavras usariam para elogiá-lo e já começava a treinar suas expressões de agradecimento. Abriu a porta de seu gabinete e foi direto para a mesa do escritório pegar o jornal da manhã. Ao invés de comemorações, uma certa preocupação passava a tomar conta de sua face. Não tinham escrito nada positivo sobre o evento, apenas teceram duras críticas sobre a quantidade de vira-latas que estavam no local e, em letras garrafais, “Cipriano não se importa com os bichos” estampava a primeira linha do jornal.
― E aí? Bora ir no bar da Iracema no fim do expediente? ― disse Adalberto ao adentrar no gabinete do prefeito.
― Deixa para outro dia. A imprensa tá espalhando fake news sobre a inauguração e tô correndo risco de não me reeleger. Precisamos pensar em algo rápido.
― Certo, prefeito. Então quantas cestas básicas o senhor quer encomendar?
― Vou fazer diferente ― falou Cipriano. ― Semana passada entregaram essa máquina que volta no tempo, a gente poderia refazer o dia de ontem e o jornal não teria mais nada para criticar. O que acha?
― Sei não. Esse negócio parece arriscado.
― Deixa de ser frouxo, Adalberto.
― E se a gente parar em outra dimensão?
― Para com isso. Entra logo na cabine.
Os dois apertaram o botão para voltar no dia anterior e, em segundos, aquela manchete deixou de existir. Cipriano teve uma ideia para mostrar o quanto se importava com os animais, iria libertar uma família de tartarugas na praia. Para isso, ordenou que seu secretário fosse capturar algum bicho na floresta enquanto o prefeito chamava a população e a imprensa para o evento.
Uma faixa enorme escrito “Cipriano ama os animais” foi colocada na areia da orla de Santa Cecília. Ele segurava o megafone e anunciava uma surpresa que iria acontecer em alguns minutos. Aos poucos, os primeiros curiosos começavam a parar no local e esperar a tão aguardada mensagem. A praia estava completamente lotada quando Adalberto chegou carregando uma tartaruga em mãos.
― Preciso da atenção dos senhores ― disse Cipriano. ― Por toda a vida sempre mostrei o quanto eu me importo com a população da minha amada Quintana, mas hoje, vou mostrar também o tanto que eu cuido dos animais.
Ergueu a tartaruga para a plateia.
― Ele tava largado na estrada, perdido, desidratado, a beira da morte. E eu, com as minhas forças, levei pra casa e fiz de tudo para deixá-lo bem e hoje, senhores, quero que presenciem essa tartaruga voltando pro mar porque Cipriano Cachoeira também se importa com os nossos bichos.
Uma salva de palmas se espalhava pela praia e os apoiadores começavam a gritar “Cipriano! Cipriano! Cipriano!”. Adalberto correu para passar uma mensagem importante no ouvido do prefeito.
― Eu não consegui achar a tartaruga na floresta, mas aluguei uma que vi no pet shop. Precisamos devolver depois.
Então Cipriano segurou o animal e colocou com as duas mãos no mar, evitando que fugisse.
― Mãe, olha! Tá soltando bolhinha ― apontou uma menina na multidão.
O prefeito olhou assustado seu secretário.
― Adalberto, o que isso quer dizer?
― Quer dizer que o bicho tá tentando respirar e o senhor tá afogando.
― Mas você não pegou uma tartaruga?
― Não tinha, senhor. Então pegamos um jabuti. É praticamente uma tartaruga, vem tudo com casco.
― E esse trem vive na água?
― Negativo, senhor. A moça da loja falou que não é para entrar em contato com ambiente marinho. Disse que faz mal.
Cipriano colocou rapidamente o animal na areia, agradeceu a atenção dos moradores presentes e fugiu em uma caminhonete ao som de aplausos e assobios. Mais tarde, a notícia que o prefeito estava maltratando os bichos estampava as primeiras páginas do jornal.
― Temos que voltar ― afirmou o prefeito. ― Tive uma ideia melhor.
Novamente, os dois apertaram o botão da cabine do tempo e recomeçaram aquele dia. Dessa vez, Cipriano decidiu que ia focar nos projetos de educação ao invés dos animais. Decidiu demolir uma fábrica abandonada para construir uma escola integral no lugar.
― Adalberto, há quanto tempo existe essa promessa?
― Há uns 10 anos, senhor.
― E quem foi o idiota que prometeu isso?
― A idiota foi tua mãe, senhor.
― Respeito aí, Adalberto.
― Sério mesmo. Ela prometeu na época que foi prefeita.
― Ok. Me fala onde fica a fábrica e chama logo a imprensa.
Cipriano preparava seu discurso para esse novo evento, tinha que usar as palavras corretas para conseguir a maioria dos votos. Vestiu um terno preto com gravata vermelha, a mais bonita em sua coleção, e foi direto para a fábrica abandonada. Ao chegar lá, foi recebido por uma multidão acalorada gritando “Cipriano! Cipriano! Cipriano!”.
― É com muito orgulho que venho a cumprir mais essa promessa. O que antes tinha uma fábrica, agora vai dar lugar a uma escola para nossas crianças. Eu, como prefeito, sempre escuto os anseios dos moradores e sabemos que com amor, trabalho e fé nós mostramos que é sempre possível fazer uma Quintana mais digna para nossa população. Agradeço demais pelo apoio de vocês e não se esqueçam de votar em mim, Cipriano Cachoeira para prefeito.
― Senhor, não se esqueça de apertar o botão de demolir ― avisou Adalberto.
O prefeito apertou o botão, a fábrica ficou intacta, mas a escola que estava ao lado começou a desmoronar. As paredes entortaram com a explosão, o teto desabou rapidamente e uma nuvem de poeira atingiu as pessoas que tinham comparecido. O barulho do choro das crianças, agora sem ter onde estudar, começava a ficar cada vez mais presente naquele local. Em instantes, “Prefeito não se importa com a educação” era vendido nas bancas.
Cipriano não acreditava que teriam errado onde colocar as dinamites. Era algo muito simples, ficava na esquina entre a rua Columbia com a avenida Graça Aranha, até mesmo um turista conseguiria acertar. Talvez fosse sabotagem dos candidatos de oposição, pensou. Mas precisava, primeiro, descobrir quem estava escrevendo tantas matérias caluniosas para prejudicar sua eleição.
― Adalberto, me diga quem está falando mal de mim. Nós vamos conversar com essa pessoa agora.
― Senhor, aqui tá falando que é uma tal de Valdirene. Conhece?
― Ah! Conheço sim ― Cipriano não fazia ideia quem fosse.
Os dois seguiram novamente para a máquina do tempo.
― Dessa vez, vamos direto conversar com essa aí. Me falaram que a cabine também nos leva para o lugar que precisamos estar.
― Melhor não, senhor.
― Para com isso. Vem logo.
― Senhor, eu vou ficar aqui. Vamos deixar essa história para depois e focar na eleição.
Cipriano decidiu viajar sozinho. Chegou em um corredor estreito com uma porta entreaberta na sua frente. Ele entrou sem avisar e se deparou com uma fisionomia bem conhecida.
― Adalberto? Tu não tinha falado que ia ficar na prefeitura? O que está escrevendo aí?
― Bom dia, senhor! Não é nada não, é só um diário ― Adalberto rapidamente fechou a tela do notebook.
― E o que tem nesse computador? Fiquei curioso. Me mostra.
― Prefeito Cipriano Cachoeira, quanto tempo ― disse uma voz que estava se aproximando.
Cipriano olhou para trás.
― Senhorinha da roupa simples que eu tirei foto e não sei o nome? O que faz por aqui?
― Me chame por Valdirene. Prefeito, eu gostaria de pedir pra dar uma olhadinha na iluminação do bairro do Girassol. O poste tá piscando e a rua tá muito escura. Tive que forçar teu secretário a escrever no jornal pra você me ouvir.
― Mas, senhora. Era só conversar com meu assessor. Ele está logo aqui ― apontou para o rapaz que estava em uma mesa ao lado do Adalberto, escutando toda a conversa.
Cipriano Cachoeira foi correndo resolver o problema e, desde então, procura ouvir diretamente as reclamações dos moradores para que não apareça outras Valdirenes em sua carreira política.
Olá, Benhur. Tudo bem?
Resumo: prefeito vai e volta no tempo a fim de tentar refazer os erros de sua campanha e engatar sua reeleição. No fim, resolve passar a ouvir seus eleitores melhor.
Comentários: eu dei umas 2 boas risadas nesse conto. Isso já é um baita mérito. Fora a coragem do autor de participar de um desafio desses com um texto curto e de humor. O texto tem até uma pegada quase de crônica, algo que poderia ser publicado num jornal. Adoro textos assim. Meus parabéns!
De crítica: a repetição das idas e vindas ao passado, a forma bem abrupta e sem explicações de como aquela máquina do tempo foi parar ali (ok, eu sei que a intenção era fazer disso parte do humor. Mas, mesmo assim, faltou alguma conexão, me parece, com o resto da trama, uma verossimilhança maior), e o desfecho.
Independente de tudo, o texto consegue o que se propõe a fazer. Boa sorte no desafio e, de novo, parabéns pelo trabalho!!
Satírico, o texto encaminha o humor pelos personagens, pelos diálogos acelerados e afiados e também pea narrativa, que não gasta tempo e introduz a viagem no tempo como uma banalidade, novidade quase esquecida que se torna catalisadora da trama. Que o tom bem-humorado (até no pseudônimo!) seja consistente na narrativa demonstra uma autoria eficiente em assegurar ao texto o sentimento que quer passar. Em questão de trama, entretanto, é onde ponho minha crítica maior, pois sinto que se tornou um pouco repetitivo e o desfecho pareceu abrupto, como uma piada que se perdeu no caminho. Apesar disso, foi um texto divertido de ler, o que mais me entreteu até aqui.
Olá, Morado. O título do seu conto fez-me recordar do lema de Salazar, que chefiou o governo nacionalista em Portugal “Deus, pátria e família”. O conto narra a história de um político que, preocupado com a sua reeleição, recorre a uma máquina do tempo para corrigir os seus erros. No processo, vai criar erros ainda maiores até descobrir a solução mais simples: resolver os problemas. É um corolário brilhante de um conto que junta os temas das Viagens do Tempo com os Lugares Abandonados. Poderemos mesmo encontrar alguma alusão ao Noir, mas o mesmo não é muito evidenciado.
Um conto muito bem humorado, uma bela sátira da política[gem] brasileira. Brinca muito bem com a ideia da viagem do tempo que nunca da certo. Estava me divertindo bastante, mas acho que o final ficou um pouco abaixo das expectativas. “Murchou” um pouco. Se revisar isso, fica um conto perfeito.
Boa sorte!
EMA (Escrita, Método, Adequação)
E: Escrita simples, mas eficiente. Tente trocar o “ao invés de” por “em vez de”, soa melhor. A carga humorística combinou bem com o estilo adotado. Sem grandes floreios, mas de fácil entendimento.
M: Até que enfim um texto bem humorado! Curti a viagem maluca até o final. A conclusão ficou um pouquinho aquém do esperado. Entendi que a proposta era voltar ao início, mas para quem tinha uma máquina do tempo em mãos, esperava algo mais grandioso ou apoteótico no fim. É um texto simples, mas que cativa. O final poderia ter sido mais bem trabalhado, mas o restante agradou muito.
A: Bem, temos uma viagem no tempo insólita. Certos textos não precisam de explicação. Esse é um deles. Quando o texto já estabelece a premissa insólita, passamos a acreditar que um artefato destes exista sem consequências graves. Poderia ter uma lição de moral? Podia. Mas é suficiente para entreter.
Nota: 9,0
Cipriano Cachoeira quer se reeleger e, dispondo de uma máquina do tempo, volta ao dia anterior para tentar criar um dia perfeito, à prova de críticas.
Um conto leve e divertido, com bom humor. O personagem do prefeito, bem caricato é engraçado e, infelizmente, bastante familiar.
O tom cômico nas tentativas de corrigir o dia funciona bem.
Minha crítica fica por conta do fechamento, que me pareceu meio incoerente. Adalberto era o traidor e isso é uma informação muito importante demais para ficar assim, só sugerida. Isso merecia mais impacto. Idem o papel de Valdirene.
Salve, Benhur.
Conto que descreve as peripécias de um prefeito de cidade litorânea que, às voltas com uma possível reeleição, resolve utilizar uma máquina do tempo para corrigir erros em sua administração e impedir a mídia de divulga-los.
A parte gramatical não está perfeita, podendo ser revista, como, por exemplo, em “Senhorinha da roupa simples que eu tirei foto e não sei o nome?”, que poderia ter vindo como “com quem tirei a foto”. Outro ponto que poderia ser revisto é ““Cipriano não se importa com os bichos” estampava a primeira linha do jornal”, onde acredito que deveria ser “primeira página”, e não “primeira linha”.
A trama é interessante e o tom cômico e leve foi um acerto, lembrando um pouco as peripécias de Odorico Paraguaçu, de O Bem Amado, em suas tentativas falhas para conseguir inaugurar o cemitério de Sucupira. O ritmo ágil e a linguagem descompromissada também foram boas escolhas pois combinam com o humor impresso no texto. E, claro, é um enredo que atende plenamente ao tema do desafio.
Mas, acredito, que o conto poderia ter ficado um pouco mais de tempo sendo maturado, pois fico com a impressão de que a primeira metade está mais bem equalizada que a segunda. O final, sobretudo, pareceu bastante apressado e até um tanto quanto ilógico.
Bom, é isso. Boa sorte no desafio!
Esse prefeito, Cipriano Cachoeira, fez-me lembrar um pouco do antológico personagem Odorico Paraguaçu, de Dias Gomes, um político engraçado e picareta, sem aquela construção discursiva própria e verborrágica. O texto é muito agradável de ler, de humor leve e descontraído, corre liso, com diálogos simples e bem construídos. Achei interessante também à menção da máquina do tempo, uma cabine à la Doctor Who, principalmente em relação à sua falta de maiores explicações, como se a mesma fosse algo comum de se receber ou comprar na venda da esquina. Esclareço que não vai aí nenhuma crítica, até porque os contos de Murilo Rubião tinham uma vibe assim: o fantástico era recebido sem estranhamento pelos personagens.
O enredo gira em torno das tentativas fingidas do prefeito em fazer boa figura diante da mídia e, para tanto, volta no tempo na intenção de reparar suas trapalhadas como, por exemplo, confundir jabuti com tartaruga, o que quase leva à morte do bichinho por afogamento. Acredito que há aqui um bom desenvolvimento da ideia central da narrativa: mostrar, com bom humor, a picaretagem eleitoreira que costuma permear a nossa classe política em época de eleições, ou criar uma figura pública imbuída de características positivas que não existem. A única ressalva que faço é sobre o fechamento da história que, sei lá, me pareceu faltar um pouco do humor presente nas outras partes da narrativa, mas confesso que não saberia como fazê-lo também.
Prefeito viaja no tempo para (re)construir uma boa imagem pública para si.
Escrita simples, no geral limpa, clara, objetiva, divertida e bastante regional, com uma forte pegada brasileira, nacional, com nomes de personagens e locais próprios da língua. Viagem no tempo sem cientificismos, estripulismos, maquinicismos. Ótimo desenvolvimento, mas com desfecho apressado: pareceu-me que a história merecia um desenlace melhor. Há pouca relação entre o corpo e o título.
Amor, trabalho e fé- A frase do título deve ser o lema do prefeito de Quintana em sua campanha para se reeleger. Na inauguração de um semáforo, ele tira foto com uma senhora, em trajes simples, para chamar atenção na primeira página do jornal da cidade. A mulher tentou pedir para ele aumentar a iluminação pública do bairro, que está deficiente, mas o prefeito se esquiva dizendo para ela falar com o assessor dele.
Assim são alguns políticos que só se importam com aquilo que lhes convém.
O conto é a história bem-humorada do Prefeito Cipriano Cachoeira que deseja se reeleger. Para isso ele inventa alguns planos mirabolantes para agradar a população da cidade. E se dá mal. Precisa voltar no tempo para desfazer os estragos, mas acaba fracassando.
A história não é ruim. Alguns errinhos não atrapalham a compreensão do texto. Porém, acho que ficou algumas pontas soltas. A traição de seu secretário é apenas sugerida, o que prejudica a força da narrativa. O que será que ele estava escrevendo no notebok? Não se sabe se o prefeito conseguiu se eleger. Seria interessante saber o que aconteceu com ele e com Adalberto. De qualquer forma, o texto é bem escrito, uma história engraçada, mas com uma mensagem importante e legítima.